Postado por Jayme Fucs Bar em 28 de Janeiro de 2011 às 5:52am
O dever da memória
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“Os perdedores guardam o segredo de saber como ninguém que a história pode ter sido de outra maneira. Tudo isto para dizer que a memória é conhecimento e não apenas sentimento”, escreve Reyes Mate, professor, pesquisador no CSIC e autor de La herencia del olvido, prêmio Nacional de Ensaio, em artigo publicado no jornal El País, 27-01-2011. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
“É hora de contar os pormenores desta comoção nacional antes que cheguem os historiadores” (Os funerais da Mamãe Grande, Gabriel García Márquez).
O dever da memória nasce de Auschwitz porque aquilo foi pensado como um projeto de esquecimento. Não devia ficar nenhum resto físico do povo judeu para que se esquecesse sua contribuição metafísica à história da espécie. O projeto não se realizou, por isso falamos de crime contra a humanidade, mas não se consumou porque Hitler foi vencido e isso nos obriga a recordá-lo. Honrar a memória de Auschwitz é entender o alcance do dever da memória.
Essa memória é perigosa, por isso não surpreendem ataques como os do historiador Tzvetan Todorov neste mesmo jornal a propósito da memória argentina. Todorov se pergunta se uma leitura do passado argentino feita a partir da memória das vítimas não atenta contra a verdade e a justiça da história. Não se deve esquecer, diz, que as vítimas eram terroristas e que, se tivessem vencido, teriam enchido o país de sofrimento. Ao ser esse o contexto da repressão da ditadura militar, é preciso evitar a linguagem simplificadora como falar de vítimas e verdugos ou bons e maus. Falando assim não fazemos justiça com o que aconteceu e, para fazê-la, é preciso conhecer os fatos, assim como faz a história.
Urge esclarecer em que medida a verdade e a justiça, que Todorov reclama para a história, já são impensáveis sem a referência à memória. O filme Shoah, de Claude Lanzmann, abre com uma sequência em que Srebnik, um sobrevivente, caminha cabisbaixo até um ponto em que aponta para o chão enquanto diz “foi aqui”. Aí não há nada, um pouco de grama envolta pelo silêncio de um bosque perdido na Polônia. Mas aí estava a câmara de gás. O olhar da vítima devolvia à realidade desse lugar uma presença esquecida que faz parte do mesmo, como as árvores e o ar que se respira. O olhar da vítima permite conhecer uma parte da realidade que sem ela seria inacessível.
Gradowski, o Sondercomando de Auschwitz que ocultou entre as pedras do forno crematório as páginas de seu diário, passou a vida escrevendo porque sabia que a história poderia contar como, quantos e onde morreram, mas não como viveram. Isso só eles sabiam. Os perdedores guardam o segredo de saber como ninguém que a história pode ter sido de outra maneira.
Tudo isto para dizer que a memória é conhecimento e não apenas sentimento. A memória nos proíbe de confundir realidade com faticidade, com fatos, porque da realidade fazem parte os não-fatos, o que não chegou a ser e que, segundo Aristóteles, não são dignos de que a ciência (a história) repare neles.
E, voltando ao caso da Argentina, como explicar a suspensão do tempo que ocorre no caso dos desaparecidos? O tempo se detém para as vítimas e isso afeta o resto da sociedade que não pode seguir em frente como se nada tivesse acontecido. O desaparecido plana sobre a sociedade como um fantasma que exige justiça. O tempo da memória questiona o da história.
Por isso é preciso falar de justiça anamnética. O historiador, diz Todorov, faz justiça assinalando o contexto da violência, seus antecedentes e consequências. Essas contribuições que não diminuem a justiça da memória, que é outra coisa, são bem-vindas. A sua tarefa é submeter a juízo a justiça histórica tão propensa a justificar a produção de vítimas por exigência do roteiro. O filósofo Hegel justifica os massacres históricos como preço do progresso; os políticos, os sacrifícios dos mais fracos com a promessa de que assim, renunciando às suas conquistas, seremos mais competitivos e se gerará mais empregos.
Pois bem, a justiça anamnética julga o interesse geral a partir do destino do indivíduo singular que, sendo inocente, é objeto de uma violência desmerecida. Coloca-se do lado de Dostoievski, para quem uma única lágrima infantil já era um preço excessivo para a harmonia universal. Este rigor diante do sofrimento de um inocente é condição necessária para exigir uma política sem violência. A memória é justiça porque não suporta que a injustiça seja o preço da política. E é preciso dizer que inocentes eram os montoneros desaparecidos porque, mesmo que fossem delinquentes, tinham o direito de ser julgados dentro das leis e não executados. Inocentes em relação à violência sofrida. Isso não significa que as ideologias sejam iguais, mas a avaliação crítica de suas diferenças se faz em outro departamento, no das ideias políticas.
Ao contrário da justiça da história, reclamada por Todorov, e que se substancia em uma explicação dos fatos, a justiça memorial não pode descansar enquanto houver uma injustiça não reparada. Fatos que para a história estejam devidamente explicados e classificados, são, contudo, casos abertos para a memória porque enquanto a injustiça não tiver sido saldada, não se pode falar de justiça histórica, sem que valham moralmente as anistias ou as prescrições, por mais legais que possam ser.
Para ler mais:
•A memória como antídoto à repetição da barbárie. Entrevista especial com Reyes Mate
•O Mal, a vingança, a memória e o perdão. Revista IHU On-line, no. 323
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