O maior medo do israelense, maior do que uma guerra nuclear com o Irã, maior que o medo da morte, é o medo de ser Frayer. Em uma palavra, frayer é o otário, mas nós já vamos entender melhor o que isso significa. O pavor de ser frayer acaba modelando a vida do indivíduo e da sociedade como um todo, e conhecer isto é indispensável para se poder entender o que é ser israelense.
Etimologia
Frayer (פראייר) vem do alemão Freier, que significa “pretendente”, um homem solteiro que procura uma mulher (Frau). De pretendente, freier ganhou o novo significado de “aquele que costuma ir a prostitutas”, e também “aquele que é fácil engana-lo, rouba-lo, a vítima de uma trambicagem”. A palavra migrou ao Leste, e entrou no polonês e no russo. Em polonês freier significa ladrão. Já no início do século XX, freier ganhou na linguagem popular russa o significado de “aquele que se deixa levar, pessoa ingênua, boba e sem experiência, no melhor dos casos apenas um cara que não é nem ladrão nem criminoso”. A palavra chegou ao hebraico pelo idish, língua dos judeus da Europa oriental, e a gíria “frayer” claramente tem um significado bastante parecido ao do russo. Em hebraico se usa frayer com o verbo sair: ser otário se diz sair frayer (latzet frayer = לצאת פראייר).
Exemplos
Antes de discutir sobre o que significa ser frayer, citarei dois exemplos para entrarmos no clima. Todos são verdadeiros, e vivenciados por mim (aproximadamente). A pergunta que o israelense sempre faz, e que guia o seu comportamento, é: Que-que é? Eu tenho cara de otário?? (Ma, ani frayer? = מה, אני פראייר ).
1 – Domingo é o dia em que os soldados de todo o país voltam para suas bases, após o fim de semana. Jovens de 18 a 21 anos se amontoam nas rodoviárias tentando pegar o primeiro ônibus que puderem, e a cena não é nada bonita. Não existe fila para subir no ônibus, não existe respeito pelo espaço do outro. Quem tiver cotovelos mais ousados vai ganhar um lugar. Os civis que também querem subir no ônibus não tem tratamento diferenciado, eles também empurram e são empurrados. É cada um por si, e Deus por todos. A velhinha pede passagem, e o soldado com espinhas na cara não dá, senão não vai ter mais lugar na janela. “Que que é? Eu tenho cara de otário?”
2 – Saguão de embarque de um aeroporto em uma capital européia. Destino: Tel Aviv. Aos poucos os israelenses que estão voltando para casa se reúnem em volta do portão de embarque e amigavelmente conversam com seus compatriotas sobre as agradáveis histórias das férias. Todos embarcam sem demais complicações, e o avião decola. Ao longo do curto voo, uma inquietação crescente pode ser sentida. Tão logo o avião aterrisa, os amigaveis compatriotas tornam-se feras, a cordialidade desaparece e cada um só pensa em ser o primeiro a sair do avião, o primeiro a passar pela imigração, o primeiro a pegar as malas. Dois colegas de voo, que sentaram juntos na fileira 17, agora se ignoram, e fazem a conhecida ‘marcha atlética’ em direção ao primeiro táxi livre. “Que que é? Eu tenho cara de otário?”
O que significa ser frayer?
Gadi, o personagem principal do sitcom israelense A Vida Não É Tudo (hachaim ze lo hakol = החיים זה לא הכל), explicou desta forma:
“Para ser um frayer é preciso de duas pessoas: O frayer e aquele que faz do frayer um frayer”.
Uma pessoa não pode ser frayer apenas porque se deu mal em certa situação. O frayer surge quando alguém tem medo de ser transformado em frayer, e como estratégia preventiva, faz de outro um frayer. Esse raciocínio é conhecido como “a armadilha hobbesiana”. Em “O Leviatã”, Hobbes escreve: “Pois a natureza dos homens é tal que, embora sejam capazes de reconhecer em muitos outros maior inteligência, maior eloqüência ou maior saber, dificilmente acreditam que haja muitos tão sábios como eles próprios”. Acertou em cheio, taí uma boa caracterização do israelense médio. Hobbes continua: “E contra esta desconfiança de uns em relação aos outros, nenhuma maneira de se garantir é tão razoável como a antecipação; isto é, pela força ou pela astúcia, subjugar as pessoas de todos os homens que puder, durante o tempo necessário para chegar ao momento em que não veja qualquer outro poder suficientemente grande para ameaçá-lo.” Nota 10 para o Thomas.
O mecanismo descrito acima funciona quando o Leviatã (o Estado) não está presente, e esta é a grande diferença entre o não-frayer israelense e o jeitinho brasileiro. A grande maioria dos casos de “frayerismo” (frayeriut = פראייריות) são os de furar fila, empurrar, grosseria verbal para ganhar alguma vantagem, etc. Muitas são as vezes que um amigo israelense me conta uma história e eu a imagino acontecendo no Brasil. Uns colegas foram acampar ilegalmente numa reserva natural no deserto do Negev, e foram surpreendidos por um fiscal. Eles pagaram a multa (cara) sem dizer nada e foram levados embora. Ninguém pensou em molhar a mão de ninguém. Neste caso eles não foram frayerim, pois ninguém os fez de frayer, mas esta é exatamente a perfeita situação para o jeitinho brasileiro entrar em ação.
Os israelenses estão aprendendo a fazer fila, embora num ritmo pouco satisfatório para o meu gosto. Apenas há alguns anos atrás senhas com números foram introduzidas em farmácias e bancos para dar ordem na bagunça. Na agência de correio perto de casa não há senhas, e quem chega pergunta “quem é o último?”, essa é a regra. As pessoas não ficam de pé em fila, ficam cada um em seu canto, lendo jornal ou jogando candy crush no celular. Nos 10 ou 15 minutos que normalmente levo para ser atendido, eu tenho que ficar esperto pra ver se ninguém vai furar a fila, é uma tensão constante. Na última vez que fui à farmácia um cara sem senha queria ser atendido quando o meu número foi chamado. “Eu não sabia que tinha que pegar uma senha”. Acabamos discutindo e fazendo um mini-barraco, até que eu fui atendido. Eu estava segurando a minha filha de um ano e meio no colo, e ele estava acompanhado do filho de 10 anos. Ele não teve vergonha nenhuma de mostrar ao filho como é que se faz para não dar uma de frayer, mas eu sim fiquei com vergonha de ter caído na “armadilha hobbesiana”.
A intervenção do Estado não é a única maneira de controlar a “síndrome do frayer”. Normas sociais são tão ou mais importantes. Os pesquisadores Luis Roniger e Michael Feige publicaram em 1992 o artigo “A cultura do frayer e a identidade israelense” no periódico Alpaim, onde explicam o fenômeno do frayer como uma mudança de identidade de gerações na sociedade israelense. A primeira geração, a das primeiras aliot (primeiras ondas de imigração judaica à Palestina), se auto identificava como pioneira, a segunda geração como sabras (israelenses natos), e a terceira geração é caracterizada pela cultura do não-frayer, que surgiu como crítica interna à cultura das gerações que a antecederam. A primeira geração de pioneiros queria realizar um ideal, e por isso o sacrifício pessoal para o bem do coletivo era bem visto e esperado. Sempre houve a opção de não contribuir com o coletivo, mas não havia a mesma legitimação como há hoje. A cultura do não frayer é uma expressão profundamente anti-ideológica, seus heróis não se sacrificam pelos outros, muito pelo contrário, lutam pelos seus interesses pessoais. A cultura do não-frayer nos mostra a mudança na percepção do que é força: para os pioneiros, a força do indivíduo derivava de sua integração na narrativa de renascimento nacional e sua abdicação pessoal para o bem de todos. O frayer simboliza a queda da fonte de poder do coletivo ao indivíduo. Se o indivíduo não está disposto a se sacrificar, a força do coletivo sofre, e a longo prazo os próprios interesses do indivíduo podem ser atingidos. Esse é o paradoxo que Roniger e Feige indentificam na cultura do frayer.
O “Protesto dos Otários” (mechaat hafrayerim = מחאת הפראיירים) vem lutar exatamente contra uma crescente percepção de que aquele que faz exército e se sacrifica pelo país é frayer. Assim como as “vadias” da Marcha das Vadias e os palmeirenses que se chamam orgulhosamente de “porco”, esses “otários” surgiram após os grandes protestos sociais de 2011 para exigir que a lei de serviço militar obrigatório fosse cumprida por todos, sem exceções. Se o jovem judeu ortodoxo é liberado de três anos de um duro serviço militar e pode ficar estudando Talmud no conforto de sua yeshiva, por que um jovem laico teria que carregar o fardo adicional em seus ombros, e dar uma de otário? O protesto dos otários veio tentar acabar com a crescente espiral que levaria o serviço militar a entrar na lista de coisas onde é aceitável e esperado de cada um lutar por si só, como na fila de correios e bancos, trânsito e tantos outros.
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