O Profeta Shmuel
Fomos ao cemitério neste último domingo celebrar a inauguração do túmulo de Samuel Blay, nosso querido parente de minha mãe e amigo dos mais chegados de Itic Roizman, o Itcik , meu pai. Ambos pertenciam às reminiscências da shtetl em São Paulo e levaram consigo todo o peso da sua herança judaica em relação à nós , filhos já de uma modernidade cujo sentido judaico aberto vai se tornando cada vez mais subliminar de um sentimento profundo linguístico e cultural característico sempre de um semi- estrangeiro em seu próprio país.
Esse sentimento do Shtetl, que poderíamos colocar paralelo ao banto do negro africano, era uma tristeza que sempre se manifestou adormecida no próprio sentido comunitário judaico e que poderíamos colocar como existente para além do âmbito judaico. Isso por que conferia aos laços familiares uma impressão de solidez que permanecia adaptada ao além mar e era encontrada de forma comum nas ocasiões festivas, no nosso caso, casamentos, barmitzvas, sinagoga, clube, etc. Esses momentos, para nós, instauravam um sentido de participação coletiva e comunitária cuja infra-estrutura se mantinha de uma certa maneira protegida e alheia à superestrutura da metrópole, São Paulo, ainda mais que estudávamos também em colégio judaico. O que não poderíamos supor, na época, era uma certa coincidência temporal e factual entre o que estava prestes a surgir, uma nova era tecnológica, que iria fragmentar a cultura mil vezes mais do que a modernidade, e a morte dessa geração, de nossos parentes e amigos, Esther, Samuel, Itic, Julio, Paulina, Eni, Geni, Saul, Malvina, Raquel, Edmundo, Dora, Saulzinho, Henrique, Ana, Paulo, e muitos outros, enfermos Haidée, e Paulina K, que significavam, na verdade, os pilares que sustentavam o espírito da coisa, da Shtetl, do Braz, coisa que só agora para nós é claro, essa gente miúda de ouro, esses Mench, enterraram com eles a vitalidade daquele estado de outrora.
Fui ao cemitério também para lembrar os cem anos que faria minha avó e segunda mãe Esther Blay falecida em 1994. Minha mãe ficou com Alzheimer em 1996, faleceu em junho de 2009 e meu pai em outubro do mesmo ano.
Bia Blay , filha de Samuel, leu neste domingo no túmulo um texto de um folder que tinha escrito anos antes, sobre seu pai, o Samuel. Era sobre as frases que nos deixavam perplexos que ele costumava dizer aos outros quando estávamos por perto, inesquecíveis para nós e para todos que lembram dele com amor.
A preferida era : “ Vamos conversar sobre a vida?”
Essa frase, junto a outras, ouvíamos dele desde a infância.
Perguntava também: “ o que o meu amigo conta?, no caso o governador , ou , como vai o Bill Clinton?.
Se não víamos, na infância e na adolescência, sentido nessas frases, além da pura troça ou brincadeira com os pirralhos menores ou “aborrecentes”, penso hoje que o Samuel, o Shmuel, se antecipou poeticamente ou filosoficamente sobre o significado das coisas e sua essência. A perda de referenciais e a diluição de significado e sentido hoje, ele já entendia à sua maneira, como se pudesse colocar nessas frases simples, algo do significado para ele do que representavam as relações humanas simples...entre as pessoas...família, amigos, conhecidos... e isso talvez pudesse sugerir uma essência da vida colocada nessas frases simples.
Como minha irmã Maysa diz em nossa conversa via Facebook:
“ele era simples, gostava de sua rotina e das tradições, um amigo que não abandonava nem era abandonado.”
Mas pensando mais profundamente nesta sua frase simples, que como se referiu no túmulo Bia Blay, poderiam ser uma essência dele, o “ Vamos conversar sobre a vida?” hoje me incomoda. Pois era como se ele estivesse querendo dizer: E tudo o mais , o que importa? Vamos conversar sobre a vida?
Hoje, no estado em que nos encontramos, diluído o sentido humano, onde não nos falamos mais nem ao telefone, nem por mensagem, com essa geração e o que ela representou praticamente extinta, isso faz um profundo sentido muito mais que no passado. Conversar sobre a vida, conversar, na verdade, pensamos aqui conosco, o que importa na vida é o que travamos, sentimos pelos outros, aqueles que compartilham nossa vida durante alguns momentos, que depois irão embora. Como eles foram e todos nós iremos também.
E minha irmã diz no Facebook de sua sensação:
“e como eles estão presentes, meu pai e ele, parece que nós vamos nos ver à noite para comer uma pizza...”
E eu digo: Era difícil entender ele: falar ao contrário as palavras, ou mande um abraço pro Bill, mas qual Bill? o Clinton... ou pro Garotinho (pois minha irmã mora no Rio).
Mas penso: o que sobra de tudo isso? O amor , o respeito pelo outro.
Esse Shmuel era na verdade um anarquista!!!
Maysa responde: À sua moda, bem particular, nada há de mais anárquico que isso!
E eu digo: Completamente anárquico: Vamos conversar sobre a vida?
Ora, penso, todas as conversas são sobre a vida, perguntar isso para os outros é chegar num ponto de mutação. É o mesmo, que dizer, tudo, mas tudo mesmo o que importa é a gente estar aqui, agora, a conversar sobre a vida. Parece algo de uma simplicidade de reiteração que vem da forma portuguesa de pensar.
Maysa diz no Facebook: “Escreve um texto sobre isso...acho muito rico”
Tinha esquecido e perguntei... Como é mesmo que se diz gente em Iídiche?
Maysa: Mench
É isso. Mench
Maysa: Oi a Mench
Eu: Shmuel, o profeta poderia ser o título. O que fica no final das contas?
O que há de humano em cada um, é o que realmente importa, todos nós. Com suas fraquezas, seu brilho, o Shmuel, meu Pai, minha mãe, Esther.
Eu digo: bjo
Maysa: beijo ge.
Não é comum por aqui, sinto que forcei a barra como interlocutor, mas consegui hoje conversar durante alguns instantes sobre a vida no Facebook...
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