Postado por Paulo Blank em 2 de Outubro de 2009 às 2:34am
Passado o Yom Kipur fica mais fácil abordar o tema do perdão. Com a inscrição garantida no livro da vida podemos conversar com mais calma. O dia do Kipur concentra o pensamento num assunto que atravessa a vida humana e diz respeito ao nosso cotidiano. Erros, arrependimentos e perdões estão sempre presentes no pensamento e na linguagem. Quantas vezes durante um dia comum usamos o inocente “desculpe”, ávidos por ouvir o “não foi nada” como resposta?Ao reverter a seta do tempo, o perdão permite a transformação das relações porque modifica o passado e muda o futuro, ao desfazer as nódoas paralisadas da existência. Sem este movimento, as emoções e as lembranças continuariam congeladas num presente cristalizado e afundado em poças de mágoa. A tarefa do perdão, uma invenção genial do espírito humano, é libertar aquele que perdoa de qualquer vínculo com quem lhe causou alguma ofensa e fazer o relógio andar novamente. O perdão interessa, e muito, a quem perdoa. Mas, olhando do ângulo de quem o pede, ele só faria sentido se pudesse transformar a culpa em responsabilidade. Será que todo pedido de perdão garante que este caminho foi percorrido? Creio que não.O que vemos na nossa civilização midiáca ocidental é o político envolvido com prostitutas ir a público pedir desculpas por um assunto que só deveria interessar a ele e a sua família. O que será que torna tão comum um gesto que anos atrás era assunto privado? O esquecimento das falcatruas de nossos políticos e a expectativa das autoridades de que isto aconteça não será a expressão da mesma idéia de que o perdão está garantido? Será que somos todos candidatos ao perdão antecipado porque vivemos em uma cultura que nos transformou em crianças irresponsáveis e aprisionadas entre a realidade do mundo e a urgência dos nossos desejos?Em seu estudo talmúdico sobre o tema do perdão, Emanuel Levinas cita o tratado Yoma: “Se um homem comete uma falta com relação a outro homem e o apazigua, Deus perdoará; mas se a falta se refere a Deus quem poderá interceder por ele a não ser o arrependimento e as boas ações”. O autor grifa este final de frase. O texto é claro. Em relação ao próximo, Deus não interfere, em relação a Ele mesmo, também não. É sempre a própria pessoa que se transforma em agente do seu perdão através da atitude que toma com o outro. Seja este outro o seu próximo ou um outro mais distante, o outro por excelência, ou seja, Deus. Nada de conversas facilitadoras do tipo “você precisa perdoar a si mesmo”. Fala que aponta para o horror à responsabilidade que permeia a busca frenética por uma felicidade ancorada na satisfação imediata dos nossos desejos. Numa religião para adultos as coisas ficam mais difíceis.Sem perdão antecipado, o homem se percebe solitário em sua responsabilidade frente ao outro. A idéia de que ele não sabe o que faz cai por terra quando existe a premissa da consciência e do conhecimento. Um humanismo de crianças abandonadas num mundo onde Deus zela por elas, se transforma num humanismo da irresponsabilidade. A mensagem contida nesta expectativa é de que quem estiver dentro da crença instituída sabe o que fazer e não erra mais. Quem estiver fora do grupo é perdoado por que ainda não sabe o que fazer. Demasiada institucional esta segurança que libera da escolha quem estiver fazendo parte da verdade do grupo. A Torah prefere a prática de responsabilidade pelo outro que não se restringe aos hebreus. Ela inclui na mesma exigência, também, o estrangeiro que mora junto à porta daquele que sabe dos mandamentos.“Podem-se perdoar muitos alemães, mas alguns alemães é difícil de perdoar. É difícil perdoar Heidegger...de liberá-lo de sua responsabilidade”. Heidegger o filósofo que aderiu ao nazismo, a este é impossível perdoar, afirma Levinas em seu artigo. Afirmação que ecoa até os dias de hoje quando a admiração pela profundidade do seu pensar se transforma em passaporte para o esquecimento de sua adesão consciente ao hitlerismo. É na esteira dessas posições que surgem perguntas. É possível perdoar ao assassino de Itzhak Rabin, como já o fizeram tantos judeus ditos religiosos em Israel? É possível o perdão antecipado a todos aqueles que incorrem em assassinatos acobertados pela lei? É possível perdoar aos que mentem e manipulam no exercício do poder? É possível perdoar às nossas pequenas atrocidades? Nos idos dos anos 60 um amigo vivia repetindo uma frase que soava antipática: “o fascismo é a condição natural do homem, compete a nós combatê-la”. Eduardo Basili, o tal amigo, tinha uma visão apocalíptica da humanidade ou era uma pessoa lúcida? Quando em 1953 após o assassinato de cidadãos árabes da aldeia de Kivia o sábio israelense Yeshaayau Leibowitz perguntava espantado como foi possível que jovens criados no espírito do sionismo fizessem tal coisa, ele não estaria se referindo a este mesmo auto-perdão antecipado capaz de bloquear de antemão qualquer sentimento de culpa em função de uma justificativa bem construída?E então, Heidegger pode ser perdoado ou o Eduardo é que estava certo?
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