Viagem inesquecível: Sandra Boccia apresenta Tel-aviv, a cidade bolha de Israel
http://revistamarieclaire.globo.com/Revista/Common/1,,EMI233286-17737,00.html
Hoje ela é diretora de redação da revista “Pequenas Empresas & Grandes Negócios”, mas em 2009 era para a Marie Claire que a jornalista Sandra Boccia escrevia reportagens internacionais de tirar o fôlego. Uma das mais marcantes foi feita em Tel-aviv, em Israel, chamada aqui de “cidade bolha” por passar, de certa forma, ilesa pelos conflitos entre israelenses e árabes.
“Tel-Aviv e Jerusalém estão para Israel assim como a noite está para o dia. Distantes uma da outra 58 km não pedagiados, que podem significar 40 minutos ou até duas horas de estrada, a depender do trânsito, essas duas cidades se comportam como se fizessem parte de países distintos. Enquanto na primeira a parada gay faz enorme sucesso e atrai pais com crianças de colo, por exemplo, na segunda a cena GLS se desenrola à sombra da sociedade. Os pick up bars —onde os frequentadores entram sozinhos com a declarada intenção de sair acompanhados para uma noite de prazer—, além dos guardas contratados que revistam as bolsas de todos na porta de entrada, contudo, são comuns tanto a uma como a outra”. Continue lendo a reportagem aqui!
Imersos numa faixa de terra relativamente segura de Israel, os telavivim assistem aos conflitos do seu país como quem vê um filme trágico. Mas sabem que, a qualquer momento, podem ser tocados pela realidade
A voz de veludo de hadar marks ressoa pelas ondas da Galgalatz, rádio 24 horas produzida por jovens militares do Exército Israelense que se reserva o direito de tocar apenas música e informar ouvintes sobre o trânsito nas principais estradas do país. Não é papel da âncora de 23 anos falar de assuntos militares, apesar de ela ter sempre em mente a rotina árdua dos rapazes e moças que estão no campo de batalha quando seu programa vai ao ar, às 19h. Hadar é uma das estrelas da rádio estrategicamente situada em Jaffa, zona árabe de Tel-Aviv. Recebe cartas, e-mails, telefonemas. Tempos atrás, um de seus fãs começou a ligar quase todos os dias. “Shalom. O que você vai tocar hoje?”, perguntava o soldado. A conversa evoluiu para uma amizade de fato e Hadar decidiu dar a ele seu número particular. No dia 25 de junho de 2006, o telefone dela tocou. O tom da voz do outro lado da linha era de puro desespero. As frases chegavam aos soluços e se duplicavam. “Não diga nada, não diga nada. Eu estou em Gaza, estou em Gaza, e o Hamas pegou ele, o Hamas pegou ele.” Hadar gelou e começou a chorar. Seu amigo se referia ao jovem soldado Gilad Shalit, então com 19 anos. Um dos filhos de Israel, até hoje desaparecido, acabava de ser capturado pelo Hamas. Hadar ainda estava chorando quando o telefone tocou de novo. “Por favor, Hadar, faça o seu programa de hoje normalmente. Sorria.” A noite chegou e ela lhe obedeceu. “Eu não podia falar do sequestro no ar. A única coisa que disse de diferente foi: ‘Desculpem-me cidadãos de Israel, mas hoje o programa é dedicado aos soldados que estão em Gaza. Apenas a eles’. Eu estava me sentindo péssima, mas agi e falei com se estivesse superanimada e feliz.”
É difícil imaginar Hadar infeliz. Num átimo, a futura mãe de três filhos lindos, que exibe cabelos fartos e maçãs proeminentes, amante confessa da música israelense dos anos 50 e de batatas fritas, faz dúzias de piadas sobre si mesma. Encosta o microfone nos lábios e nos seios numa insinuação sensual, tira sarro dos seus quilinhos a mais (“É que eu comi uma vaca no jantar ontem”), faz caras e bocas, e revela aos ouvintes, sem cerimônia, episódios que a aborreceram durante o dia, como a dura tarefa de achar uma vaga para estacionar. Sua capacidade de improvisação impressiona e não deixa de ser curioso que a sua linda voz seja cultivada à base de Coca-Cola e cigarro.
Sentimentos contraditórios, vícios velados e modos pueris fazem de Hadar uma metáfora perfeita da cidade que ama e habita, Tel-Aviv. Assim como a âncora da Galgalatz, que apresenta seu show em uma sala com isolamento acústico (embora técnicos acompanhem todos os seus movimentos através do vidro), o vibrante centro cosmopolita de Israel, que celebra 100 anos em 2009, parece protegido do mundo exterior. A cerca de 70 km da Faixa de Gaza, Tel-Aviv sorri mesmo com motivos para ficar triste. Nenhum dos mais de 350 bares, cafés e danceterias deixou de funcionar, por exemplo, apesar dos sucessivos atentados de homens bomba, justamente em lugares do gênero, depois da segunda intifada (revolta dos palestinos), que eclodiram em 2000 (leia quadro “Notícias de guerra”).
Às sextas e sábados (o shabbat), dias sagrados no país judeu, dezenas de coloridos barcos a vela partem da marina e seguem seu rumo ao sabor da brisa suave do mar Mediterrâneo; a areia cintilante continua forrada de banhistas. Uma posição geográfica relativamente segura, somada a essa atitude de aparente indiferença, rendeu à cidade o apelido de Ha Buah (A Bolha). É esse também o nome do filme do cineasta Eytan Fox, que aborda, com humor fino e delicadeza, a complexa realidade de um grupo de jovens telavivim, incluindo a improvável história de amor gay entre um israelense e um árabe. Educado em Jerusalém, a capital sagrada de judeus, cristãos e muçulmanos, o cineasta, que há muito assumiu sua homossexualidade, não cansa de dizer que Tel-Aviv “é o único lugar de Israel onde é possível levar uma vida normal”. Apesar da sua afirmação, porém, o filme acaba de forma trágica, enfatizando a impossibilidade de os telavivim levarem uma vida como se estivessem em qualquer outra cidade do mundo.
Tel-Aviv e Jerusalém estão para Israel assim como a noite está para o dia. Distantes uma da outra 58 km não pedagiados, que podem significar 40 minutos ou até duas horas de estrada, a depender do trânsito, essas duas cidades se comportam como se fizessem parte de países distintos. Enquanto na primeira a parada gay faz enorme sucesso e atrai pais com crianças de colo, por exemplo, na segunda a cena GLS se desenrola à sombra da sociedade. Os pick up bars —onde os frequentadores entram sozinhos com a declarada intenção de sair acompanhados para uma noite de prazer—, além dos guardas contratados que revistam as bolsas de todos na porta de entrada, contudo, são comuns tanto a uma como a outra.
40 mil pessoas cantaram “Give peace a chance”
o terrorismo desconhece fronteiras internas. Os habitantes da Ir Ha’hataim (Cidade dos Pecados, outro codinome de Tel-Aviv) acham a cidade santa pacata demais e uma certa rivalidade logo se faz flagrante. No divertido mural de fotos de soldados à paisana da rádio Galgalatz, um balãozinho de dizeres colado na foto do telavivi diz tudo: “Nada de areia, nada de garotas de biquíni, de quem foi a ideia de fazer uma ‘beach party’ em Jerusalém?”.
Jovens gays de Tel-Aviv como o relações públicas Ron Dagan, 32 anos, dizem que não conseguem se imaginar morando em Jerusalém nem em qualquer outra parte do país: “Aqui, não preciso esconder quem sou”, afirma, com orgulho. O estudante argentino Enzo Laufer, 28 anos, também gay, fez aliá (imigração) e há três anos vive em Tel-Aviv. Como a maioria dos jovens da sua faixa etária, mora com amigos. Sozinho, não conseguiria pagar o aluguel. O preço dos imóveis em Tel-Aviv é o mais alto de Israel, e o custo de vida contribui para a cidade ter sido considerada a 14a mais cara do mundo pela consultoria econômica Mercer. Mesmo assim, ele se diz satisfeito vivendo na Bolha: “É aqui que encontro o meu marco humano comum”. Quando enfrentam problemas com a família ou amigos, gays, lésbicas e transgêneros de 14 a 19 anos encontram abrigo gratuito na Casa de Liberdade, única no país. No amplo sobrado do bairro de Neve Tzedek —o primeiro a ser fundado por judeus ashkenazi no fim do século 19, os adolescentes dormem, se alimentam e recebem orientação psicológica gratuitamente por até seis meses.
Mas as coisas nem sempre foram asssim. A grande virada deve-se à cantora transexual Dana International, 36 anos, batizada Yaron Cohen, hoje a mais famosa intérprete israelense desde Ofra Haza. Em 1998, apesar de protestos de religiosos, Dana foi escolhida como representante do país para participar do Eurovision, um dos mais populares concursos de música do mundo. Dana não só ganhou o primeiro lugar como deu a Israel o direito de sediar a versão do ano seguinte. Sua vitória teve tal repercussão que centenas de gays e lésbicas saíram para celebrá-la na Rabin Square, a imensa praça da prefeitura, assim chamada depois do assassinato do primeiro-ministro Itzhak Rabin, por um judeu fanático, em 1995. Uma nova era de tolerância (de gênero, ao menos) foi inaugurada pela diva e hoje Dana é uma das celebridades mais queridas dos telavivim. No fim de 2008, entrou na seleta lista da Time Out como um dos 20 heróis da cidade, ao lado de personalidades como Tzipi Livni, 50 anos, forte candidata ao cargo de primeiro-ministro de Israel nas eleições deste mês —fato que pode torná-la a primeira mulher a assumir o cargo desde a lendária Golda Meir.
Uma cidade que nunca dorme. Nunca. A frase que se tornou lugar-comum para metrópoles como São Paulo e Nova York ganha significado ainda mais forte na Bolha. Nenhum dos seus 380 mil habitantes se surpreende de receber o telefonema de um amigo à 1h da manhã. Os telavivim também lotam o supermercado às 2h (se for o caso, de pijamas), comem pizza (ou café da manhã) às 3h, saem para passear com o cachorro, no porto, às 4h (sem medo da violência urbana, incomparavelmente menor que a de São Paulo ou Rio), enfrentam congestionamento às 5h (!) e saem de boates para entrar em after parties que começam às 7h e só terminam ao meio-dia. Tzipi é figurinha carimbada nas típicas noites de jazz das quintas-feiras. Mas, no fim de 2008, um show em especial teve o poder de comover toda a nação. Depois de 41 anos de espera pelos Beatles —à época considerados uma influência corruptiva por lideranças e impedidos de entrar no país —, Paul McCartney entoou “Give peace a chance”, pela primeira vez, para 40 mil pessoas, no parque HaYarkon. O astro de 66 anos ignorou as ameaças de fanáticos que, em sites, o desaconselharam a se apresentar no estado hebreu. Infelizmente, atentados e guerras ainda têm o poder de inibir a ida de estrelas internacionais a Tel-Aviv. Madonna jamais fez um show no país, apesar de ir até lá para estudar cabala. Na segunda guerra do Líbano, em 2006, o grupo inglês Depeche Mode cancelou sua apresentação, frustrando milhares de jovens, que agora não hesitam em pedir dinheiro emprestado, se preciso for, para pagar US$ 100 por um ingresso do show, previsto para maio, no mesmo HaYarkon.
Uma mini Los Angeles, disse a The Economist
quando classificaram os beatles como má influência, os políticos de Israel talvez estivessem pensando em jovens comprometidos com o ideal do socialismo sionista que fundaram os célebres kibutzim, comunidades agrícolas espalhadas pelo país que hoje funcionam numa lógica cada vez mais distante do modelo original. Mas a geração high- tech que habita a Bolha, considerada uma mini Los Angeles pela The Economist, parece muito mais preocupada em construir carreira e ganhar dinheiro. “Prevaleceu o espírito capitalista da cultura americana. Apesar de politizados, os sabras (israelenses) estão perfeitamente inseridos na sociedade de consumo”, diz Henrique Rattner, autor do recém-lançado Israel e a paz no Oriente Médio – Uma luz no fim do túnel?, entre outros livros sobre o tema.
Na aconchegante Brasserie —lotada 24h—, em frente à praça Itzhak Rabin, o sous-chef Orr Barry, de 28 anos, conta que seu namoro de oito anos terminou, entre outros motivos, porque ele trabalha muito: das 12h à meia-noite, no elegante restaurante Catit. Soldado da reserva do exército israelense, ele se diz pacifista, não religioso e de cabeça aberta (“Minha irmã é lésbica e não vejo problema nisso”). Em dez anos, imagina-se dono do próprio negócio, casado e com uma vida tranquila, passeando de bicicleta pela orla do Mediterrâneo, como faz hoje em horas de folga. Orr sabe que, no caso de conflito, pode ser chamado a qualquer momento, como aconteceu em 2006, quando ficou 35 dias em combate. Mas prefere focar em seu trabalho: “Não acho graça nenhuma em ter de parar o que estou fazendo e ir para o Exército. Mas não me concentro nisso”.
Não é preciso ir longe para encontrar quem pensa de modo diferente. Sentada nas escadarias na face oposta à prestigiada companhia de dança Suzanne Dellal, em um raro dia de chuva de outubro, a soldada Naama Arian, 19 anos, tem um ar quase infantil, que desaparece por completo quando ela finalmente se dispõe a falar sobre seu papel na unidade de inteligência do Exército: “Não tenho ressentimentos do Holocausto, mas essa é uma ferida que carrego comigo. O meu avô teve amigos que morreram de forma trágica e tenho obrigação de tomar conta dessa memória. Vejo jovens que querem ir para outras partes do mundo, mas eu não. É aqui que vejo a estrela de David no pescoço das garotas na rua, é aqui que ouço a minha língua quando ligo o rádio, é aqui que encontro um sentido para minha vida. Ser soldado é uma forma de amar meu país”. Mais relaxada, fazendo pose para a foto, ela recupera sua aura de menina e faz questão de explicar que, no serviço militar, existem dezenas de funções administrativas, não somente o campo de batalha, mas as garotas preferem namorar combatentes em primeiro lugar e, em segundo, paramédicos. “Eles são mais masculinos”, diz.
Jovens da Bolha planejam suas carreiras, sonham acordados e curtem seus amores independentemente do que se passa na fronteira com seus inimigos. À mesa, levantam os copos e brindam Lehaim (“à vida”, em hebraico). Mas todos sabem que moram numa cidade ferida. Sabem que, em algum momento, acabarão tocados pela realidade. Seja durante os três anos compulsórios no Exército (para homens), ou dois (para mulheres), quando ambos completam 18 anos; seja quando ficam sabendo que um parente, amigo ou vizinho se feriu ou morreu. No feriado judaico do Purim de 1996, Orr passeava pelo shopping Dizengoff quando escutou um estrondo. Por minutos intermináveis, ficou à procura da mãe e da irmã, que escaparam do atentado de um homem bomba que deixou 14 mortos e 130 feridos.
A confeiteira Michal Michaeli, 35 anos, lembra-se da sua estranha sensação de impotência quando soube que o rapaz que dançara com ela numa festa de casamento morrera dias depois. “Isso partiu meu coração. Foi horrível. Se sou sionista? Sou humanista. Não acredito que os judeus têm de morrer por Israel. O meu país é que tem de cuidar de mim.” Divorciada há quatro anos, sem filhos, Michal também pretende abrir em breve seu próprio restaurante (“Um lugar onde a comida tenha o poder de fazer as pessoas felizes”). Michal não é religiosa, mas se casou numa cerimônia judaica tradicional. Caso encontre alguém novamente, diz que um novo casamento está fora de questão. Por enquanto, segue acreditando que homens são como programas de computador (“Existe sempre uma versão melhor no mercado”), reunindo-se com amigos queridos, muitos igualmente solteiros e sozinhos. Como diz o ídolo pop Assaf Amdursky, 37 anos, autor de canções que falam sobre a complexidade dos relacionamentos amorosos, os telavivim “decidiram viver suas vidas sem ser comandados pelo medo”. Para o historiador Gadi Taub, da Universidade Hebraica de Jerusalém, viver em Tel-Aviv não significa negar a morte, mas aproveitar a vida a despeito da guerra. “Os sionistas vieram para cá para viver, não para morrer. Estar aqui e aproveitar tudo o que a cidade tem a oferecer tem tudo a ver com o fato de estarmos vivos.” Viver também é, muitas vezes, uma forma de resistência.
Fotos: Yael Engelhear / Yossi Michaeli / Natan Dvir (Polaris/other images) / Gil Cohen Magen (Reuters/ Latin Stock)
Comentários