XI Congresso Internacional da ABRALIC
Tessituras, Interações, Convergências
13 a 17 de julho de 2008
USP – São Paulo, Brasil
A poesia hebraica na Andaluzia muçulmana –
uma poética da ambivalência
Dr. Saul Kirschbaum1
Resumo:
Na Andaluzia muçulmana surgiu uma importante poesia hebraica laica, de celebração da vida, ao
lado de uma tradição poética litúrgica concentrada na dor da destruição do Templo, no sofrimento
do exílio. O fato de que ambas as formas eram compostas exatamente pelos mesmos poetas, ao
mesmo tempo rabinos e pensadores do judaísmo, aponta para uma ambigüidade existencial que caracterizaria
o povo judeu desde então. Diversos poetas judeus, que na juventude compuseram poemas
laicos (sem, por isso, se considerarem impedidos de compor poesia religiosa), na velhice se
“arrependiam”, anunciavam sua ruptura com um passado pouco piedoso; não obstante, continuavam
a produzir poesia laica. Nesta ambigüidade, eram ecoados pelas autoridades religiosas, que
condenavam o modo de vida dos poetas, mas ao mesmo tempo os absolviam, já que sua participação
nas festas árabes “contribuía para o bem do povo”.
Palavras-chave: poesia hebraica laica, Idade de Ouro, pós-modernidade, encruzilhada de culturas,
crises identitárias.
Introdução
A conquista da península ibérica pelos exércitos árabes, iniciada em 711 e concluída em 756
com o estabelecimento do regime muçulmano omaiada, pôs fim, para os judeus, a muitas décadas
de opressão na Espanha visigoda. Para termos uma idéia das condições em que os judeus viviam na
véspera da chegada dos árabes, basta lermos o comentário do historiador Cecil Roth:
No regime dos Visigodos, que se estabeleceu sobre as ruínas da colônia romana,
adotou-se [a princípio] a forma ariana de cristianismo. Os judeus tinham então
poucos motivos de queixa; julga-se até que estivessem em posição privilegiada.
Mas, depois da conversão [ao catolicismo], seus senhores apressaram-se a mostrar
o zelo de perseguição tão característico do neófito. Em 589, quando o rei Recaredo
adotou o catolicismo romano, a legislação clerical corrente foi imposta também na
Espanha. A posse de escravos, os casamentos mistos, a conversão ao judaísmo, foram
proibidos sob penas rigorosíssimas. Os judeus foram excluídos de posições de
confiança ou de autoridade no Estado. Soberanos seguintes mostraram maior tolerância.
Mas a partir de 616, quando o rei Sisebuto subiu ao trono, a escuridão desceu
completa. Durante quase um século, a prática aberta do judaísmo foi absolutamente
proibida. Sucessivos concílios da Igreja, realizados em Toledo, sob a presidência
do próprio rei, enunciaram minuciosas prescrições segundo as quais antigos
judeus e seus descendentes deviam ser afastados de sua fé ancestral. Suas crianças
eram-lhes arrancadas e levadas para longe, a fim de receberem educação em casas
de catolicismo ortodoxo. (ROTH, 1963, vol. 2, p. 18)
Assim, não provoca espanto o fato de que os judeus tenham saudado os invasores como seus
libertadores. Há quem diga que os judeus foram mais longe do que apenas alegrar-se com a chegada
dos árabes, que teriam mesmo colaborado ativamente com a invasão, inclusive na forma de tropas
combatentes. No mínimo, como informa Abba Eban, sabe-se que “[n]a medida em que uma cidade
depois da outra era capturada, os judeus recebiam sua guarda, desde que estivessem presentes em
1 Bolsista da CAPES no programa PRODOC junto ao Programa de Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas,
DLO/FFLCH/USP. E_mail: saul@usp.br
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número suficiente. Desde o início, eles se tornaram um minoria confiável na Espanha muçulmana”
(EBAN, 1968, 144).
A aposta judaica mostrou-se acertada. O estabelecimento do califado inaugurou uma era de
tolerância e prosperidade. Os judeus que haviam sido convertidos à força ao cristianismo puderam
retornar ao judaísmo. Córdova, a capital do califado, foi transformada em um centro de alta cultura,
com uma universidade dotada de uma biblioteca contendo cerca de 400.000 volumes. O florescimento
cultural se fez acompanhar de incorporação política, com muitos judeus galgando posições
proeminentes na administração do estado. Os casos mais notórios foram o de Hasdai ibn Shaprut
(915-970), que veio a ser o principal conselheiro do califa em assuntos financeiros e diplomáticos –
graças a seus esforços em benefício da comunidade foi até mesmo possível criar a escola talmúdica
de Córdova2 -, e o de Samuel Hanaguid (993-1056), que se tornou vizir e comandante-em-chefe da
cidade-estado de Granada3. Em contato com a luxuriante civilização árabe, a poesia neo-hebraica de
inspiração litúrgica voltou a se expandir.
Podemos ter uma idéia do poderio e riqueza atingidos pela comunidade judaica de Córdova
pela narrativa de Abraham ibn Da´ud, cronista judeu do século doze. O rabino Hanoch ben Moshe,
conta Ibn Da´ud, era escoltado diariamente à corte do califa por “setecentos judeus em setecentas
carruagens, cada um deles adornado com trajes reais e usando o turbante de oficiais muçulmanos”
(apud HALKIN, 1999, pp. 9-10, tradução minha). Samuel Hanaguid, que tinha sido um estudante
destacado do rabino Hanoch ben Moshe, foi quem, para nela viver, restaurou uma velha cidadela
sob o nome árabe de hisn el-hamra, “a fortaleza vermelha”, a famosa alhambra, até hoje admirada.
Estava aberto o caminho para a “Idade de Ouro” dos judeus na península ibérica. Neste clima
de aceitação social e ascensão econômica e política, os intelectuais judeus se sentiram à vontade
para dedicarem-se também a uma intensa atividade cultural laica, que teve como paradigma a criação
poética árabe. Como observa Alter,
[o] nascimento de uma nova poesia hebraica /.../ foi um ato de assimilação competitiva.
Se os árabes de Andaluzia podiam se jactar de uma poesia refinada, elegante,
como peça-chave de sua cultura – uma poesia, além do mais, assentada não no dialeto
vernacular do árabe, mas na linguagem clássica do Corão – os judeus da Espanha
assumiram que tinham um modelo de perfeição lingüística ainda mais puro no
hebraico da Bíblia, a partir do qual poderia ser lavrada uma poesia esplêndida, que
ultrapassaria seus modelos árabes. Estavam envolvidas tanto imitação social quanto
literária (ALTER, 1991, p. xii, tradução minha).
Esta influência árabe, esta “assimilação competitiva”, se fez sentir não só nos aspectos formais,
nos modos de composição, no uso das métricas árabes, mas também nas temáticas abordadas.
Pela primeira vez, em séculos, podendo desfrutar das delícias de uma vida de abundância e liberdade,
os judeus passaram a compor poemas de celebração. É ainda Alter que comenta:
Os revestimentos físicos desse mundo afluente, hedonístico, seguidamente se refletiam
nos poemas: jardins prazeirosos com fontes murmurantes e pássaros canoros,
belos rapazes e moças servindo vinhos finos em taças de cristal, uma profusão de
vestimentas, utensílios e arquitetura ricamente ornamentados, eram ao mesmo tem-
2 “Alguns discípulos de uma célebre academia judaica foram feitos prisioneiros durante uma viagem pelo Mediterrâneo;
um deles, rabi Moshe, chegou com seu filho Hanoch a Córdova, onde seus correligionários os resgataram, contra tributo,
da escravidão. Um dia, sob humilde anonimato, ele se dirigiu à escola da comunidade, onde encontrou um rabino
ignorante explicando o Talmud. Apresentou algumas objeções que puseram o mestre, rabi Nathan, em dificuldade. Este,
mais desinteressado do que sábio, se levantou e deixou seu posto para o recém-chegado. Córdova tornou-se assim, pouco
a pouco, o centro da ciência talmúdica para todo o judaísmo, em um progresso tão rápido que eclipsou as academias
clássicas da Mesopotâmia” (CALIMANI, 1986, p. 119, tradução minha).
3 No século onze, o califado pediu ajuda, para combater os ducados cristãos do norte da Espanha, aos berberes do norte
da África, também muçulmanos. Estes derrotaram os cristãos, mas também provocaram o desmembramento do califado
em vários estados, chamados taifas, governados por emires soberanos.
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po diretamente representados nos poemas e espelhados nas imagens poéticas. A
poesia, antes seqüestrada na sinagoga, tornou-se, ao menos para a elite, um veículo
do quotidiano (ALTER, 1991, pp. xii-xiii, tradução minha).
É importante termos presente que até perto do final do primeiro milênio da era comum, a única
poesia composta em hebraico era litúrgica, e consistia de louvores a Deus ou de lamentos pelas
aflições de Israel. Agora, os poetas judeus falam da beleza da natureza, de amores eróticos, de prazer
sensual, de belos jovens (de ambos os sexos – referidos muitas vezes como faunos e gazelas)
servindo vinho, de jardins. E também de valores másculos, das emoções ligadas a altas ambições e
dos pesares humildes de doença, morte, velhice. Podemos exemplificar estas novas opções temáticas
com um pequeno poema de um dos mais importantes poetas da época, Iehudá Halevi, nascido
em Toledo antes de 1075, e morto (supõe-se) em Jerusalém, em 1141 ou depois:
EIS QUE ME DEU ...
Eis que me deu em prenda pura a uma gazela
que toda a noite para mim foi música de harpas e flautas acordadas;
ela me diz, quando eu empunho a taça cheia:
- Bebe de entre meus lábios sangue como de uvas.
É então que a lua surge como um til de ouro
escrito sobre a túnica da aurora.
(Tradução: Renata Pallotini. In GUINSBURG, 1969, p. 339)4
Não obstante muitos judeus terem se escandalizado, apesar de protestos contra o movimento
literário secular que perduraram por gerações, a nova poesia se alastrou como fogo selvagem. Continuou
produtiva depois que a Espanha foi re-cristianizada no processo da Reconquista, e também
depois da expulsão dos judeus, em 1492, se espalhando pelo Mediterrâneo.
Mas o problema que me concerne aqui é que o povo judeu está no exílio. O Templo foi destruído
pelos romanos em 70 e.c., Israel perdeu sua autonomia política e vive disperso entre os povos.
Só a vinda do Messias poderá trazer a redenção. Os versos de Jeremias, no salmo 137,
3 – Porquanto aqueles que nos levaram cativos,
nos pediam uma canção;
e os que nos destruíram,
que os alegrássemos, dizendo:
Cantai-nos um dos cânticos de Sião.
4 – Mas como entoaremos
o cântico do Senhor
em terra estranha?
5 – Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém,
esqueça-se a minha destra da sua destreza.
6 – Apegue-se-me a língua ao paladar,
se me não lembrar de ti,
se não preferir Jerusalém
à minha maior alegria.
são entendidos e aceitos por todos como uma conclamação ao luto permanente, uma proibição a
manifestações de alegria, um veto à celebração dos prazeres da vida. Esta situação é muito clara,
por exemplo, em um responsum de Hai Gaon5: “Quanto à sua questão sobre a posição legal de alguém
que, em nossa época [isto é, desde a destruição do Tempo] bebe [vinho] com acompanhamento
de música, especialmente entre não-judeus, ele é culpado e deve ser excomungado /.../” (apud
SCHEINDLIN, 1984, p. 275, tradução minha).
4 Ver também outro exemplo em “A gazelinha não-me-toques”, tradução comentada de poema de Iehudá Halevi por
Moacir Amâncio, em Cadernos de Língua e Literatura Hebraica num. 4, São Paulo: Pólo Editora, 2004.
5 Hai Gaon foi o último dos gueonim babilônios, contemporâneo de Samuel Hanaguid, morreu em 1038.
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Como dar conta da situação? Como manter o luto no coração, continuar respeitando as normas
da comunidade, e, ao mesmo tempo, viver no mundo, ou seja, participar das benesses oferecidas
por uma situação de afluência, de conforto material, de crescente aceitação por uma elite culta e
tolerante, como a elite árabe? Nos tempos atuais, tempos de fragmentação identitária, esperaríamos
que cada um fizesse sua escolha. Aqueles mais devotos optariam pelo piut, pela poesia religiosa
para recitação na sinagoga. Aqueles menos preocupados com as questões religiosas optariam pelas
letras seculares, pela poesia de conteúdo laico. Surpreendentemente, a resposta dos poetas judeus
espanhóis foi: “com um pé de cada lado”. Os poetas laicos mais importantes da época são justamente
os poetas litúrgicos mais importantes da época. Samuel Hanaguid, Shlomo ibn Gabirol, Moses
ibn Ezra, Iehudá Halevi compõem poemas laicos, eróticos, satíricos, no estilo de al-Andalus, ou
seja, utilizando as convenções poéticas árabes, e também são rabinos, pensam em Israel, compõem
cânticos de lamentação, choram a perda de Sião. Os poetas judeus, inevitavelmente, tinham que
enfrentar as contradições de viver entre duas culturas, na encruzilhada. O autor de
NO ORIENTE
Meu coração está no Oriente e eu, no extremo Ocidente –
como poderia eu provar meus alimentos e saboreá-los?
Como poderia eu cumprir meus votos e meus juramentos,
quando Sião está nas cadeias de Edom e eu, na servidão árabe?
Fácil seria a meus olhos renunciar a todo o bem de Sfarad,
tão precioso é a meus olhos contemplar as areias do Santuário desolado.
(Tradução: J. Guinsburg. In GUINSBURG, 1969, p. 144)
que tão bem ecoa o lamento de Jeremias, é exatamente o mesmo Iehudá Halevi de quem, antes,
transcrevemos o poema “Eis que me deu ...”, que celebra a noite de música e vinho desfrutada junto
a uma “gazela”. Halevi, considerado por muitos como o maior poeta judeu entre o final do período
bíblico e o século doze. A palavra de ordem é, podemos dizer, ambivalência. Assim como, séculos
mais tarde, os judeus responderiam a Napoleão que se consideravam “franceses na rua, israelitas em
casa”, a elite pensante judia de al-Andalus parece dizer que “está de luto, chora a perda de Sião, na
sinagoga, mas celebra a vida na rua (na verdade, nos suntuosos palácios dos ricos), na atmosfera
árabe do quotidiano”.
É claro que esta ambivalência, para se sustentar, supõe uma resposta adequada do establishment.
Uma negociação, mesmo que tácita. Os poetas certamente não poderiam manter “um pé de
cada lado” se de fato fossem considerados culpados e, por isso, excomungados. O responsum de
Hai Gaon, do qual citei acima só o início, deve ser lido por inteiro: “Quanto à sua questão sobre a
posição legal de alguém que, em nossa época [isto é, desde a destruição do Tempo] bebe [vinho]
com acompanhamento de música, especialmente entre não-judeus, ele é culpado e deve ser excomungado,
/.../”, continua com:
a menos que ele seja um cortesão [lit., seja admitido ante o governante], e trabalhe
para a proteção dos judeus, e esteja seguro a respeito de si mesmo, que não deslizará
para licenciosidade, e a menos que se saiba que no momento [de beber e escutar
música] ele está concentrado na destruição do Templo, e que ele está forçando seu
coração para ser triste e não esteja se divertindo, e a menos que ele escute [música]
apenas por deferência para com o rei, de modo a beneficiar Israel (SCHEINDLIN,
1984, pp. 275-6, tradução minha).
Ambivalência, pois, de ambos os lados. Contra todo o ritualismo que caracteriza o judaísmo,
que implica estabelecer contato somente com a exterioridade, uma “ortopraxis”, é necessário agora,
para legitimar a ambivalência, invadir a interioridade do judeu (poderoso e influente, freqüentador
da corte do governante árabe, poeta e intelectual) para saber em que ele está pensando enquanto
bebe e escuta música, para ter certeza de que no fundo do coração ele está triste, que ele aparenta
estar se divertindo apenas por deferência para com o governante não-judeu, e apenas como artifício
para beneficiar seu povo.
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Mas, apesar da negociação, apesar do acordo com o establishment, o poeta judeu não está em
paz consigo mesmo, uma vez consciente de sua ambivalência. Poetas compungidos, Brann os qualifica.
A culpa os devora. Diz o autor:
Os poetas hebreus se prostravam ante uma consciência literária problemática. Eles
estavam cientes de seu afastamento abrupto das normas hebraicas em um movimento
arabizante, mas, ao mesmo tempo, queriam, ansiosamente, ser identificados
como herdeiros da tradição literária do antigo Israel. Colocando isso de outra forma:
a poesia hebraica andaluza é um híbrido literário. Seu verso de vanguarda reflete
as normas adaptativas sub-culturais dos intelectuais judeus, mas essa poesia se
enraíza, através da linguagem, imaginário e associações, no texto mais tradicional,
a Bíblia hebraica (BRANN, 1987, p. 128, tradução minha).
Em meu entender, a questão talvez não seja apenas literária, como Brann dá a entender, mas,
e principalmente, existencial. A conseqüência desse estado de coisas seria que, tipicamente, os poetas,
na juventude, escreviam sobre amores, vinhos, celebração da vida6, e se “arrependiam”, se voltavam
para as questões religiosas, para o luto pela perda de Sião, quando envelheciam. O exemplo
mais contundente do fenômeno é a carreira deste Iehudá Halevi de quem mostramos acima poemas
antagônicos. Por volta de seus sessenta e cinco anos, em 1140, Halevi, num “renascimento místico”,
rompeu com os modos de vida de al-Andalus (“renunciou a todo o bem de Sfarad”, como anunciara
no poema “No Oriente”) e optou por uma vida de devoção religiosa, decidindo mudar-se para a
Palestina, onde acabou morrendo. Como poeta litúrgico, defendeu a idéia de que “o sofrimento de
Israel é uma santificação do nome de Deus”. Em sua obra maior, o Cuzarí, reconhecida como uma
defesa “não-filosófica” do judaísmo tradicional, Halevi sustenta que “Israel poderia ter apressado o
resgate submetendo-se de boa vontade ao jugo do exílio” (CARMI, 2006, p. 107, tradução minha).
Nesta mesma obra, condena expressamente a poesia laica composta pelos judeus de al-Andalus (da
qual ele mesmo é um dos expoentes):
/.../ quando alguém deseja contatar o que é sublime e espiritualmente mais elevado:
esta pessoa tende a isolar-se do contato com o sexo oposto, de gente jocosa e de regalar-
se com cantigas de amor ou chistosas, que podem afetá-la negativamente
(2003, p. 137, diálogo 2:60).
O mesmo conflito foi experimentado por seu mestre, Moisés ibn Ezra7, que, numa revisão de
sua carreira, anunciou que renunciara e abandonara a poesia, tendo resolvido devotar seus anos remanescentes
a assuntos mais valiosos8.
Porém, não obstante serem poetas “compungidos”, continuam a levar uma vida de ambivalência;
apesar dessas declarações dramáticas, continuam compondo poemas seculares. Halevi, a caminho
da Palestina, demorou-se alguns meses no Egito, onde escreveu muitos poemas de louvor a
judeus egípcios notáveis e de celebração das belezas do mundo9. Ibn Ezra, “refletindo sobre a condição
humana, corrigiu suas observações: ‘No entanto, eu nunca me abstive completamente de
compor poesia, sempre que a necessidade surgiu’” (apud BRANN, 1987, p. 126, tradução minha).
6 O que não os impedia de, ao mesmo tempo, comporem poesia religiosa; como assinalamos acima, os principais poetas
seculares são também os principais poetas litúrgicos.
7 Ross Brann inclui, entre os poetas “arrependidos”, Shem Tov ibn Falaquera (1224-1290) e Todros Abulafia (1247-
1295) (1987, p. 140, nota 21, tradução minha).
8 “Durante a juventude e o início da idade adulta, eu estimei a poesia como artesanato que armazena glória, e a considerei
como um meio de impressionar os outros. [Anos] depois, renunciei a ela e a abandonei – como uma gazela deserta
sua sombra – por ter resolvido devotar meus anos remanescentes a assuntos mais valiosos” (apud BRANN, 1987, p.
126, tradução minha).
9 “Entre setembro de 1140, quando desembarcou [no Egito], e maio de 1141, quando embarcou para a Palestina, o poeta
festejou judeus egípcios notáveis com pelo menos cinqüenta e um poemas e quatro cartas de ocasião em prosa hebraica
rimada. /.../ De fato, os poemas de Halevi para os judeus egípcios notáveis são conspícuos por seus panegíricos mundanos
e sua celebração das belezas deste mundo.” (BRANN, 1987, p. 125, tradução minha).
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O fato de, mesmo depois de condenarem sua obra poética da juventude, os poetas continuarem
a compor o mesmo tipo de poesia (ainda que, como o fez Iehudá Halevi, mudando a forma,
abandonando a métrica árabe-andalusa e voltando à escrita silábica hebraica mais antiga dos poemas
religiosos), recoloca o problema. O que é, afinal, esse “arrependimento”, essa “compunção”?
No mesmo ensaio que venho citando, Brann apresenta a questão de forma mais ampla:
Muitos poetas hebreus e árabes, andaluzes e orientais, desenvolveram escrúpulos
‘revisionistas’ em relação a versos que haviam composto quando jovens, sugerindo
uma tipologia do ‘poeta compungido’ – uma tradição histórico-literária de como
uns poucos poetas se comportaram e como muitos poetas gostariam de ser percebidos
(BRANN, 1987, p. 126, tradução minha).
De fato, muitos poetas árabes, ao envelhecerem, renunciaram à poesia profana e frívola, com
declarações públicas e gestos expressivos. Entre estes, Brann relaciona Abu Amr ibn al-Ala (século
8), Khalaf al-Ahmar (século 8), Abul Atahiya (século 9), Ibn Abd Rabbihi (século 10, al-Andalus),
Ali ibn Hazm (século 11, al-Andalus) e outros. Porém, Brann observa que
para poetas judeus, que estudavam assiduamente seus correspondentes árabes, a
tradição literária sugeria um modelo para ‘a vida do poeta’. Em uma poesia governada
por convenções, tipologias e ideais literários eram inegavelmente importantes.
Mas raramente, se alguma vez, os poetas viveram vidas tão nitidamente estilizadas
quanto seus versos (BRANN, 1987, p. 127, tradução minha).
Conclusão
Muito se tem escrito, nestes tempos de pós-modernidade, sobre crises identitárias, sobre viver
na encruzilhada de culturas, sobre desterritorialização cultural. Talvez a longa experiência dos judeus
com o exílio, com a situação de imigrantes desenraizados, sempre estrangeiros, tenha antecipado
estes fenômenos. Podemos formular uma nova hipótese, para deixar a questão em aberto: Será
que o “arrependimento” era apenas mais uma convenção literária assimilada da cultura árabe? Será
que a compunção expressada pelos poetas judeus era somente mais um aspecto da “assimilação
competitiva”, de que Alter fala? Outro aspecto disto que se poderia chamar uma “poética da ambivalência”,
uma estratégia de sobrevivência?
Referências bibliográficas:
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CALIMANI, Riccardo – L´errance juive: la dispersion, l´éxil, la survie. Trad. Maurice Darmon.
Paris, New York, Amsterdam: Diderot editeur, Arts et Sciences, 1996.
CARMI, T. – (ed.) The Penguin Book of Hebrew verse. London: Penguin Books, 2006.
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EBAN, Abba – My People: The Story of the Jews. New York: Behrman House, 1968.
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HALEVI, Iehudá – O Cuzarí. (Trad. Paulo Rogério Rosenbaum) São Paulo: Editora e Livraria Sêfer
Ltda., 2003.
HALKIN, Hillel – Grand Things to write a poem on: a verse autobiography of Shmuel Hanagid.
Jerusalem: Gefen Publishing House, 1999.
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Paulo: Fundação Fritz Pinkuss, 1963.
SCHEINDLIN, Raymond P. – “A Miniature Anthology of Medieval Hebrew Wine Songs” (pp.
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