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A oferta de nacionalidade aos sefarditas agita Israel
Uma foto da charge publicada no diário israelense Haaretz nesta segunda.
A decisão do governo de Mariano Rajoy de iniciar os trâmites para aprovar no Congresso uma modificação do Código Civil para conceder a nacionalidade espanhola aos judeus sefarditas que consigam documentar essas origens ancestrais despertou grande entusiasmo em muitos israelenses, o que provocou uma enxurrada de consultas à missão diplomática da Espanha neste país. Os grupos sefarditas estimam que 3,5 milhões de pessoas poderiam se beneficiar dessa medida que, por decisão do Ministério espanhol da Justiça, não obriga os solicitantes a abdicarem de outras nacionalidades que já possuam.
“De repente somos todos espanhóis”, era o título desta segunda-feira do jornal israelense Yedioth Ahronoth, o qual relatava que “já tem gente em Israel fazendo fila para conseguir um passaporte”. De forma semelhante, o diário Haaretz publica hoje uma charge em que 17 pessoas com camisetas, cachecóis e cartazes do Barça são vistas diante da embaixada da Espanha em Tel Aviv.
O anteprojeto de lei ainda precisa tramitar no Parlamento, e sua aprovação provavelmente levará meses, mas isso não impediu que listas de nomes sefarditas já circulem nos sites dos jornais israelenses. Uma delas, na página do Yedioth Ahronoth, traz 5.200 sobrenomes como Alba, Ballestero, Fuentes, Toledano, Salom e Suaréz.
O povo judeu foi expulso da Espanha em 1492, mas sua herança e sua cultura sefarditas se conservaram ao longo de mais de cinco séculos. Muitas famílias sefarditas ainda guardam o que dizem ser as chaves das casas em que suas famílias viviam quando foram expulsas pelos reis católicos em sua campanha de homogeneização religiosa do país. Ao longo dos séculos, os sefarditas conservaram o idioma ladino, ou judeu-espanhol, uma variante medieval do castelhano.
“O governo espanhol passou das palavras aos atos, embora isso não seja simples como apertar um botão, é um processo. Usando uma metáfora, é como um bonde que tem várias estações. O que se fez agora foi a saída do trem, mas o assunto ainda deve ser debatido no Congresso e submetido a votação. Enquanto não for publicado no Boletim Oficial do Estado não será final”, afirma Avraham Haim, de 72 anos, presidente do Conselho das Comunidades Sefarditas de Jerusalém.Haim fala ladino. Seus ancestrais foram expulsos da Espanha e desembarcaram em Sarajevo antes de migrarem para Hebron. Ele solicitará a nacionalidade quando for possível. “Não posso dizer que se tenha feito 100% de justiça, mas isso é uma boa recompensa, é um bom gesto, muito justo”, diz hoje, com evidente emoção.
Para os sefarditas, a mudança no Código Civil lhes poupará do problema de precisarem escolher entre uma nacionalidade e outra. Atualmente eles podem solicitar passaporte espanhol por duas vias. Ou depois de residirem dois anos legalmente na Espanha ou por carta de naturalização, que é uma concessão de nacionalidade de forma discricionária por parte do Conselho de Ministros. Em ambos os casos, exige-se a renúncia a outros passaportes.
Até agora, a Federação de Comunidades Judaicas da Espanha (FCJE) concedia oficialmente os registros que certificam a origem sefardita de um solicitante. O anteprojeto de lei estabelece agora que “a condição de sefardita e o vínculo especial com a Espanha serão certificados pelo encarregado do Registro Civil do domicílio do interessado, na Espanha ou no consulado correspondente”, por várias vias, entre elas o certificado expedido pela Secretaria-Geral da FCJE ou pela autoridade rabínica correspondente.
O que despertou grande interesse entre os cidadãos de Israel foi o fato de o Ministério da Justiça ter decidido também aceitar a certificação “pelos sobrenomes do interessado, pelo idioma familiar ou por outros indícios que demonstrem seu pertencimento à comunidade judaica sefardita” ou mesmo “a vinculação ou parentesco do solicitante com uma pessoa ou família das mencionadas no item anterior”. Daí que estimem em 3,5 milhões os possíveis beneficiários, e que já circulem pelas redes sociais nutridas listas de sobrenomes sefarditas.
“O ministro da Justiça, Alberto Ruiz Gallardón, cumpre com sua palavra e com seu compromisso, e isso lhe honra”, declarou o presidente da FCJE, Isaac Querub Caro, que manifestou “sua satisfação e esperança, pois esta nova decisão supõe um passo à frente que repara um erro e uma injustiça”.
Israel é, desde 2013, o país com a maior população judaica no mundo, tendo, com 6 milhões de habitantes judeus, superando os Estados Unidos. Sua independência foi proclamada em 1948 para que se tornasse a pátria do povo judeu, numa época em que começava a ser conhecida a verdadeira magnitude do Holocausto nazista, no qual 6 milhões deles foram exterminados.
O jornal israelense Haaretz publica nesta segunda-feira uma análise em que tenta conter as expectativas dos israelenses, de forma a evitar futuras decepções. “Antes de começar a procurar as certidões de nascimento dos seus avós, de se matricular em aulas de espanhol ou procurar seu nome em uma lista que o Governo publicou recentemente, leve em conta que, por enquanto, nada mudou”, escreve Ofer Aderet. “A lei ainda precisa ser aprovada pelo Parlamento”. É verdade, mas, ao contrário do que acontece em Israel, o partido que governa a Espanha tem maioria absoluta.
Fonte: http://brasil.elpais.com/


 

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Faz algum tempo eu escrevi aqui sobre religiosos que se tornaram laicos e o que fizeram quando não respeitaram o Shabat pela primeira vez. Mas o Shabat não é somente privilégio dos que guardam a religião. Nos meus anos de Jerusalém, o Shabat sempre esteve presente como um dia especial, diferente e, na minha opinião, mágico. Apesar de secular até o último fio de cabelo eu aprendi a amar o Shabat.

Logo quando cheguei odiava o “dia do descanso”. Não conhecia muita gente, e normalmente ficava em casa nas noites de sexta. O silêncio avassalador em Jerusalém me angustiava e brincava dizendo que o barulho do primeiro ônibus ao fim do Shabat era música para os meus ouvidos. Aos poucos comecei a fazer novos amigos e ser convidada para jantares na sexta. Cada um preparava um prato e nos reuníamos na casa de alguém para o jantar, com direito a muito vinho e muitas risadas. Comecei a entender quais lugares estavam abertos, e a sexta passou a ser minha noite preferida para sair. Passei também a receber amigos em casa para o jantar. O silêncio de sábado de manhã é perfeito para se recuperar o sono de uma semana intensa de trabalho ou estudos. E desde então, caminhar pelas ruas sexta à noite, carregando pratos e panelas, dizer Shabat Shalom para estranhos, virou uma coisa absolutamente natural e sincera. E o conceito de Oneg Shabat, o “prazer do Shabat”, passou a fazer todo o sentido na minha vida.

O Shabat não é só fim de semana. É uma noite/dia de alegria, de ver os amigos, de fazer as coisas com calma, de dormir ou de ficar acordada até as 4 da manhã. Mesmo trabalhar no bar no Shabat era especial, nós que estávamos no turno trabalhávamos felizes. É realmente um dia diferente do resto da semana.

Em Jerusalém, escutava dos meus amigos sempre a mesma pergunta: O que você vai fazer na sexta? Não é como se dizia no Rio “qual é a boa de sexta” e sim um “onde você vai passar o Shabat? Se você não tem planos, venha passar comigo”. Existe essa preocupação de se cuidar uns dos outros.

Ter prazer no Shabat é uma mitzvá e, pra mim, não tem relação com a religião. Às vezes, com os amigos, a gente acende as velas e recita as rezas do pão e do vinho. Às vezes não. De vez em quando eu decido que não quero sair de casa, e passo as sextas assistindo filmes ou lendo, apreciando o silêncio.

Na liturgia, o Shabat é cantado como a noiva que vem ao encontro do amado. Acho bonita essa imagem. Meu querido amigo e rabino Uri Lam explica “o Shabat é tão esperado pelo povo judeu como a noiva é esperada pelo noivo”.

Acontece que há dois meses me mudei para Tel Aviv. Não foi uma mudança planejada, simplesmente comecei a trabalhar nessa cidade e se tornou muito cansativo ir e voltar no mesmo dia. Consequentemente meus Shabats passaram a ser na cidade. E confesso que foi um choque. No escritório, na quinta-feira, as pessoas não desejavam Shabat Shalom, e sim Sof Shavua Naim (bom final de semana). Nas primeiras sextas ligava para os amigos perguntando o que iam fazer. Ao contrário de Jerusalém, não havia planos ou a preocupação de onde você vai passar o Shabat. Não havia uma programação, nem de sair ou de jantar, decidiria-se mais tarde.

Isso me incomodou profundamente. Acho que fiquei mal acostumada com a vida “em comunidade”  de Jerusalém. Comunidade porque os amigos de lá são jovens que se mudaram para cidade, muitos por causa da Universidade Hebraica, a grande maioria seculares, que moram sozinhos ou com roommates, e que vivem relativamente juntos e assim preocupam-se uns com outros. E como a atmosfera do Shabat é muito forte, nós também somos influenciados e participamos dela.

Tel Aviv para mim tem um ar de normalidade que já não é tão interessante. A imensa maioria é secular. É uma cidade de praia, mesmo no inverno. Uma sexta aqui é tão parecida quanto uma sexta no Rio. Lojas abertas, supermercados e lojas de conveniência 24 horas, todos os dias da semana, e não como em Jerusalém que são 24 horas por 6 dias na semana. Bares, boates e restaurantes lotados. E mesmo não havendo transporte público, há o sistema de vans que circulam pelo centro, coisa que não existe em Jerusalém. É fim de semana, não é Shabat.

Apesar de eu ser totalmente a favor das coisas estarem abertas, e acho que deveria existir transporte público no Shabat, fiquei um pouco triste, saudosa dessa atmosfera especial da sexta em Jerusalém. Essa noiva pela qual me apaixonei perdidamente. E comecei a reclamar – pra não dizer encher saco – dos amigos de Tel Aviv. Precisamos de Shabat!

Na minha terceira sexta-feira na cidade resolvi, com ajuda dos amigos de Jerusalém, que faríamos o jantar na minha casa. Compramos tudo depois da entrada do Shabat – uma alegria sem fim para os Yerushalmim (hierosolimitanos), e até tivemos bacon para o café da manhã do dia seguinte! Os amigos vieram, cada um trouxe um prato preparado em casa. Acendemos velas, fizemos o kidush, tomamos muito vinho, escutamos música e demos muitas risadas. E assim finalmente me senti em casa em Tel Aviv.

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Foto de capa: “Esta é a Torá, e ela não será substituida”

Entre 300 e 600 mil pessoas 1 tomaram as ruas de Jerusalém neste domingo (2 de março), em um protesto contra a nova lei a ser votada, que reformula o alistamento militar obrigatório. Parte do princípio de Shivion BeNetel (igualdade entre os pesos), que norteou a campanha do partido Yesh Atid (do ministro da Economia Yair Lapid), o alistamento militar de determinados grupos que compõem a sociedade israelense, mas por alguma razão estão isentos de tal obrigação, passou a ser uma questão-chave. Lapid e seu partido, através de uma bem sucedida estratégia política, conseguiram deixar de fora da coalizão governista os dois partidos que historicamente defendem as causas ultra-ortodoxas: Yahadut HaTora e Shas. Não obstante, conseguiu unir forças dentro da Knesset, trazendo parte da coalizão e da oposição para aprovar seu primeiro projeto: o alistamento militar obrigatório 2 a todos os cidadãos israelenses. O público haredi (ultra-ortodoxo) da sociedade israelense imediatamente se manifestou de forma contrária. Sem tanta força na Knesset, no entanto, o projeto de lei foi avançando até o momento que sua aprovação aparenta ser questão de tempo. No dia 02, então, grande parte da população foi às ruas manifestar-se contra esta lei. E eu, sem querer querendo, estava lá. E contarei esta história não como um jornalista (que não sou) que estava cobrindo a marcha, mas como um habitante laico da região metropolitana de Jerusalém, que caiu de pára-quedas neste ato.

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Vivo em uma cidadezinha chamada Mevasseret Tzion, a 9km de Jerusalém, onde trabalho. No sábado à noite me foi avisado que a Estrada 1 (que liga Jerusalém a Tel-Aviv, única via de acesso à Mevasseret de transporte público) seria fechada desde as 12h por tempo indeterminado, devido à manifestação “dos haredim”. Apesar de defender o direito às manifestações, me indignei. Vivo em Israel há quase cinco anos e esta foi a segunda vez que vi uma manifestação desta proporção ocorrer em um grande centro urbano durante a semana. Para levar mais de 50 pessoas às ruas, os organizadores de qualquer manifestação devem necessariamente pedir permissão à polícia, que deve concordar com a data proposta,com o percurso e com a hora do evento. Em geral, as grandes manifestações são marcadas para o sábado à noite, pois já não é mais Shabat e não atrapalha ninguém que deseja locomover-se pela cidade. Sem entrar no mérito se esta lei é correta ou não, me indignou o fato de justamente as duas únicas vezes que vi manifestações durante a semana, terem sido por pautas religiosas ortodoxas. Estranho, não? Como não tinha escolha, fui trabalhar pensando em adiantar tudo o que eu pudesse, pois dificilmente sairia do trabalho antes das 20h, e meu horário de entrada aos domingos é às 8h. O caminho para o trabalho me deu uma sensação de guerra civil: centenas de policiais nas ruas; pessoas (não haredim em sua totalidade) esbravejando contra a manifestação; cavaletes amontoados para serem usados mais tarde; e ônibus e mais ônibus lotados de haredim chegando das mais diversas cidades (especialmente de Bnei Brak e Beit Shemesh, seus atuais redutos fora Jerusalém). O bairro onde eu trabalho não é próximo da rodoviária, onde se realizaria o protesto, o que diminuia a sensação de tensão. Às 17h20, após verificar que a Estrada 1 estava aberta para a saída de transporte público, decidi telefonar para a Egged (companhia de ônibus) para saber se as linhas que ligavam Jerusalém à Mevasseret estavam operando normalmente. Me foi informado que sim, mas com um percurso ligeiramente diferente. Decidi, então, sair do trabalho e ir para casa a esta hora.2014-03-02 18.21.20

A manifestação estava marcada para as 16h. Eu sabia que parte grande do caminho até o ponto de ônibus deveria ser feita a pé, e que eu me encontraria com os manifestantes em algum momento. Isto, confesso, me animava naquele momento. Nunca havia visto uma manifestação do público ortodoxo de perto. O que será que eles cantam? Como é o clima? As mulheres participam? Se sim, de que forma? Há crianças? Há violência? Estas e outras perguntas me motivavam a ir de encontro com eles, fotografá-los, conversar com manifestantes, etc. Por muitas vezes viverem isolados, há muito pouca chance de estabelecer um contato com este grupo social, e eu teria uma oportunidade de ouro.

Israel - Conexaoisrael - manifestação ortodoxa5

A cidade estava encoberta por uma neblina impressionante. As ruas do centro estavam vazias. Saltei no shuk (mercado central), aproveitei a rara oportunidade de poder caminhar por lá sem a sensação de superlotação, e comprei carne em uma das poucas lojas abertas (um açougue, no caso). Quando cruzei o shuk, a sensação foi impressionante: centenas de milhares de pessoas vestidas de preto, um mar de haredim ocupando o horizonte da cidade. Nunca havia ido a uma manifestação com tantas pessoas, isto porque parte delas já estavam se dirigindo às suas casas. Minha maior surpresa foi o fato de as mulheres serem ampla maioria. Como não cheguei ontem a Israel, suspeitei do que via. Os homens deveriam estar concentrados em outro lugar, em ruas paralelas ou na muvuca que se aglomerava na praça. Pedi para algumas pessoas abrirem seus cartazes, mostrarem suas bandeiras e comecei a fotografá-los. Eles prontamente atendiam ao pedido. O clima era de alegria: a maioria das pessoas sorriam, cantavam e pareciam estar alegres. Muitas crianças estavam presentes ali.

Quando me deparei com agrande aglomeração a minha frente, percebi que não chegaria ao meu destino por este caminho. Entrei por uma rua paralela e minha suspeita se confirmou: somente homens. 99,99% deles vestidos de preto, usando chapeus e longas barbas. Algumas poucas crianças. E alguns poucos não-haredim (alguns ortodoxos e quase nenhum laico, incluindo os jornalistas que cobriam a passeata). Decidi aproveitar melhor minha experiência e aprofundá-la: por que não passar-me por reporter e conversar com eles? Foi o que comecei a (tentar) fazer. A grande maioria deles não quis me responder, nem informalmente. Um judeu secular como eu é suspeito demais. Alguns desconversavam. Outros me olhavam feio, amedrontando-me. Um homem me disse que havia gente mais apropriada para me responder do que ele.

"Estudiosos da Torá, nos orgulhamos de vocês"

“Estudiosos da Torá, nos orgulhamos de vocês”

Resolvi mudar de de estratégia: aproveitei-me do meu sotaque e perguntar, como um ole chadash (novo imigrante) que recém-chegou em Israel, o que estava acontecendo. Deu certo! Minha primeira conversa (curta), foi com um soldado haredi. Ele me disse que estava protestando devido às más condições dos religiosos no exército: afirmava não haver comida kasher, não respeitarem suas diferenças e etc. Eu, que servi o exército, sou totalmente cético quanto a isso, mas nã0 o questionei. Julguei por bem não fazê-lo naquele momento. Ao ser perguntados sobre “Qual o objetivo da manifestação” todos me davam a mesma resposta: “não é uma manifestação, é uma reza”. Alguns explicavam que a reza era para agradecer que a absurda lei de alistar estudantes da Tora não passaria pela Knesset. Outros me devolviam a pergunta: “Você é judeu? Já rezou alguma vez? Não te ajudou?” Quando eu começava a colocar política no meio (“Você acha que os parlamentares se sensibilizarão e não aprovarão a lei?”), suas respostas e seus olhares passavam a ser hostis, e eu rapidamente mudava de assunto. Apesar de (até então) não ter visto nenhum ato de violência (e um dos jovens ter frizado isto: “Não te orgulha uma manifestação como esta, só com judeus, e com todos alegres, dançando e sem violência?”), confesso que tinha medo. Tinha medo de que eles se sentissem provocados. Lá eu era uma minoria absoluta, questionando os manifestantes (por mais que de forma educada). Não sei como eles reagem a alguém que força uma abertura a questionamentos. Por isso, parei.

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Filmei. Fotografei pessoas, inúmeros cartazes e panfletos. Assisti a um judeu secular roubar e correr com um cartaz do qual não gostou, e ser perseguido e rodeado por haredim. Se apanhou eu não sei, saí de perto. Mas fotografei o cartaz (foto abaixo). Vi cartazes bem humorados. Vi inúmeros grupos de chassídicos dançando. Vi tantos haredim, tantos cartazes com mensagens similares, que cansei. Decidi ir para casa. Ao chegar no ponto de ônibus, no entanto, a rua estava bloqueada. Telefonei para a Egged novamente, e fui informado que há uma hora não saem ônibus para Mevasseret. Me irritei. Após caminhar por 40 minutos, tinha que caminhar outros 40, até a saída da cidade, parada obrigatória das duas linhas pelas quais eu deveria viajar. Ao esperar no sinal, a mishteret hagvul (Guarda da Fronteira) estava se desdobrando para evitar atropelamentos e acidentes neste ponto de ônibus, fundamental para quem quer sair da cidade. Muitos manifestantes, já dirigindo-se às suas casas, desrespeitavam as autoridades sem pudor, com crianças, inclusive. E um senhor de aproximadamente 70 anos ofendia incessantemente a um policial, chamando-o de árabe sujo, e recomendando que ele fosse para Gaza pois aqui não precisaríamos dele. O policial o repreendeu, mas ele não parou. Eu mordi a língua e não disse nada. E depois me peguei pensando: “trata mal os árabes, os manda para Gaza e não quer servir ao exército… o que seria de nós se todos fossem como ele?”.

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“Assim começou a Shoá (Holocausto)”

Peguei meu ônibus, após grande tumulto, e fui para casa. Saí com a percepção de que os haredim são o grupo mais coeso da sociedade israelense. Saí também pensando que deveríamos dialogar mais, pois minha última impressão não foi a melhor, e quando não nos conhecemos, tendemos a generalizar nossos preconceitos. Espero que um dia eles nos dêem espaço, em uma conversação aberta, sem pré-exigências.

Notes:

  1. A grande diferença numérica me dá a sensação de que a mídia israelense, para todos os lados, manipula informações para fins políticos.
  2. Ou o “sherut leumi”, espécie de trabalho social para desenvolver o país, para os que se negarem a alistar-se ao exército por qualquer razão que seja.
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O livro Awda (“retorno”, em árabe), lançado em Israel, traz 12 contos escritos por seis autores israelenses e seis palestinos, que desenham, em detalhes, uma realidade imaginária de como seria o país após o retorno dos refugiados palestinos.
O subtítulo da obra, "Testemunhos imaginários de futuros possíveis", evidencia o exercício feito pelos autores, de imaginar levando em conta a realidade atual e o cenário geográfico e cultural da região.
Em um dos contos, o escritor israelense Tomer Gardi, que mora em Tel Aviv, descreve a cidade após o retorno dos refugiados. Na história, muitos dos que retornam resolvem ir para Yafo, hoje um bairro no sul de Tel Aviv e que, até a fundação de Israel, em 1948, era uma das cidades palestinas mais importantes – chamada Yafa (com 'a').
Entre Yafa e Tel Aviv havia um bairro chamado Manchia, que não existe mais. O único sinal que restou é a mesquita Hassan Bek, hoje cercada por hotéis cinco estrelas em frente à praia. Gardi desenha uma Tel Aviv na qual Manchia é reconstruido, mas como a região já está densamente habitada, a solução é construir o bairro em uma ilha artificial no mar Mediterrâneo, em frente a Yafo, cujo nome, após o retorno, volta a ser Yafa.
Para se deslocar da ilha, que se chamaria Manchia Jdeide (Novo Manchia, em árabe), haveria uma ponte para pedestres. Na ilha viveriam juntos judeus-israelenses e árabes-palestinos.
Lembrando o passado
O livro foi publicado pela ONG israelense Zochrot (“lembrando”, em hebraico), que se dedica a pesquisar e divulgar a memória e as informações sobre a Nakba – termo que em árabe significa “tragédia” e se refere à expulsão de centenas de milhares de palestinos durante a guerra de 1948.
Divulgação Para Eitan Bronstein Aparicio, diretor da Zochrot, "a literatura tem o poder de criar outro mundo, outra linguagem, outros conceitos, inexistentes hoje em dia".
[Capa de Awda traz o título nas duas línguas]
"Especialmente em situações como a nossa, que parecem sem saída, e nas quais é difícil ver um horizonte, a literatura e a arte em geral podem ajudar as pessoas a pensar em outras possibilidades", disse Bronstein aOpera Mundi.
De acordo com ele, o futuro imaginado pelos autores "não é um mar de rosas, mas também não é uma catástrofe". "Se quisermos realmente viver em paz nesta região, precisamos reparar a injustiça que foi cometida contra os palestinos, e isso significa reconhecer o direito ao retorno dos refugiados", afirmou Bronstein.
“Eu, como indivíduo, como israelense e como pai, gostaria muito que pudéssemos realmente nos integrar na região e não continuar vivendo em uma fortaleza isolada, com medo".
Viagem ao futuro
As diversas versões de possíveis futuros apresentadas nos contos são instigantes e quebram os conceitos que vigoram hoje em dia em Israel. Para quem acompanha diariamente os detalhes de um presente pouco alentador, é refrescante poder viajar para um futuro imaginário de paz.
O autor palestino Ala Hlehel se concentra em imaginar um reencontro de palestinos. Um homem e uma mulher que eram namorados antes da guerra de 1948 se reencontram dezenas de anos depois, quando ambos já têm uma idade avançada. A esposa atual do homem era a melhor amiga da mulher que retorna.
Então, o casal recebe a mulher em sua casa e a ajuda a se orientar na nova realidade. No conto, as relações entre os três idosos são permeadas pelas complexidades do passado.
Fronteiras abertas
Na introdução ao livro, o escritor palestino Umar al-Ghubari descreve uma viagem de todos os escritores que participaram do projeto, anos depois, para um congresso em Beirute.
Na realidade imaginária de al-Ghubari, após o acordo de paz entre israelenses e palestinos, que inclui o reconhecimento ao direito de retorno dos refugiados, todas as fronteiras com os outros países do Oriente Médio se abrem e os cidadãos podem facilmente tomar um trem da cidade de Haifa e chegar à capital libanesa em duas horas, coisa que hoje é inimaginável para os israelenses.
O autor menciona que "não há mais necessidade de tradutores", pois na nova realidade binacional, anos após o retorno, a grande maioria dos cidadãos já fala fluentemente as duas línguas – árabe e hebraico.
A forma do livro é coerente com o imaginário binacional. Versões dos contos em árabe e hebraico se intercalam. O título do livro, na capa, aparece nas duas línguas, assim como o índice e os detalhes dos autores.
Guila Flint/Opera Mundi Para Eitan Bronstein Aparicio, diretor da ONG israelense Zochrot, "a literatura tem o poder de criar outro mundo, outra linguagem"
A capa é ilustrada com a imagem de ponteiros de relógio, em referência à viagem no tempo, para um futuro imaginário, que os escritores proporcionam aos leitores.
De volta ao presente
A questão dos refugiados palestinos é a mais espinhosa entre as várias questões que deverão ser resolvidas para que haja um acordo de paz. O governo de Israel se opõe veementemente ao retorno de um refugiado sequer para dentro das fronteiras do país.
Para a liderança palestina o reconhecimento ao direito de retorno é fundamental, embora o presidente Mahmoud Abbas tenha dito que não tem a intenção de "inundar" Israel com milhões de refugiados e alterar seu caráter demográfico.
Nas negociações de Taba, em 2001, representantes israelenses e palestinos discutiram a questão dos refugiados e elaboraram uma proposta com quatro opções, onde os refugiados poderiam: retornar para o Estado palestino que seria criado nas fronteiras de 1967; permanecer nos países onde se encontram e obter cidadania e igualdade de direitos; ser acolhidos por outros países; um número de refugiados, acordado com Israel, poderia voltar para o que hoje é o território israelense.
Todas as opções incluiriam indenização pelos danos que os refugiados sofreram.
Não se sabe se a proposta de Taba será retomada nas negociações atuais, mediadas pelo secretário de Estado norte-americano John Kerry. No entanto, aquelas negociações, há 13 anos, são consideradas o momento em que representantes oficiais dos dois lados chegaram mais perto de uma solução para a questão dos refugiados.
(*) Guila Flint cobre o Oriente Medio para a imprensa brasileira há 20 anos e é autora do livro 'Miragem de Paz', da editora Civilização Brasileira.
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Amós e a emergência do universalismo profético judaico

(Publicado em CARVALHO, Alexandre Galvão (ed.): Interação social, reciprocidade e profetismo no mundo antigo.Vitória da Conquista, UNESB, 2004).

Edgard Leite
DELIMITANDO O TEMA

O profetismo judaico é um fenômeno histórico-religioso complexo e plural. A tradição rabínica afirma a sua existência desde as origens do povo judeu, como um dos eixos fundamentais da experiência religiosa judaica. Por meio dele, os elementos definidores do pacto entre Deus e os judeus foram estabelecidos. Tanto Abraão quanto Isaac, Jacó e Moisés teriam sido, nessa perspectiva, profetas – mais precisamente os quatro primeiros. Segundo Oséias (Oséias, 12:14) (circa século VIII a.C.), literalmente, “Deus fez Israel subir do Egito por intermédio de um profeta”. O historiador contemporâneo deve considerar, no entanto, as implicações decorrentes do desenvolvimento dessa tradição. Certamente o profetismo, na sua diversidade histórica, possui elementos recorrentes ao longo do processo de construção da identidade religiosa e étnica judaica (FISHBANE, 1994, p. 63). Mas também apresenta particularidades, igualmente determinantes para a compreensão do fenômeno em sua longa duração.
Parece evidente que o profetismo, em sua dinâmica formal, não era estranho às demais culturas com as quais os judeus dialogavam na Antigüidade. Existem referências a atos “proféticos” em diversos textos antigos do Oriente Próximo. A estela Mesha, datada do século IX a. C., menciona a ordem que a divindade moabita Kemosh deu ao rei Mesha de atacar a cidade de Nebo. Um texto egípcio do reino antigo (circa 1900-1785 a.C.) apresenta um certo Neferti, sacerdote-escriba da deusa Bastet, que é conduzido ao faraó Snefru, da IV dinastia. Ele prevê uma época de desagregação social e política que terminaria com o advento de um
Rei, vindo do sul. Este seria responsável pela virtual destruição dos inimigos dos egípcios e pela restauração da justiça e da ordem (PRITCHARD, 1950, p. 444-446). Nos documentos do arquivo real do reino amorita de Mari, na Mesopotâmia, encontramos os registros das comunicações das divindades Dagan, Adad, Annunitum e Diritum ao rei Zimrilim. Estão presentes nesses textos fórmulas clássicas, que serão mais tarde utilizadas na literatura profética judaica, como “Dagan me enviou, ou assim falou Annunitum”. Os oráculos, interlocutores das divindades, ligados aos templos, são denominados de diversas formas nessas fontes. Uma delas é o termo nabu, provavelmente um cognato da expressão hebraica nabi, com a qual se designa o “profeta”. (BLENKINSOPP, 1996, p. 43).
Também os gregos tinham os seus mantis, prophetes e chresmologos. Os sábios que produziram a tradução grega dos textos hebraicos, a chamada “versão dos setenta”, ou Septuaginta, utilizaram o termo prophetes para traduzir nabi, entendido como “porta-voz”, ou “aquele que fala” (MEEK, 1952, p. 2000). Entre os gregos, usava-se o termo prophetes para designar o indivíduo que realizava a ação de falar e proclamar, usualmente, uma mensagem divina (POTTER, 1994, p. 11; BLENKINSOPP, 1996, p. 27). Mas os “profetas” gregos eram principalmente “transmissores” da mensagem dos deuses, e não “interlocutores” capazes de um diálogo em igualdade de condições com o divino. Moisés, por exemplo, encontrou-se com Deus panim el-panim, face a face, “como um homem conversa com um amigo” (Êxodo, 33: 11). A tradução grega do termo hebraico não dava conta, portanto, da real dimensão do fenômeno.
Podemos portanto dizer que, desenvolvendo-se paralelamente a esses “profetismos” mesopotâmicos, egípcios, cananitas e mediterrâneos, o profetismo judaico era dotado de uma expressiva originalidade. Hilda Graef chamou a atenção para o peculiar diálogo contido na relação entre Moisés e Deus, presente de uma forma ou outra em toda tradição profética. Este inaugurou, no pensamento do Oriente Próximo, a possibilidade de um encontro pessoal com o divino, no qual o ser preserva sua integridade individual e, embora finito, torna-se capaz de uma interação em igualdade com o infinito (GRAEF, 1972). De fato, a teologia judaica rompeu, ao longo do seu desenvolvimento nessa remota antiguidade, com muitos paradigmas religiosos então existentes na região. O judaísmo passou a negar a existência de um abismo estrutural de impossível transposição entre as dimensões do mortal, transitório e imperfeito e do imortal, eterno e perfeito. Essa distância começou a ser entendida pelos hebreus como superável por meio do encantamento do Eterno pelo transitório, ou de Deus pelo homem. Relação de difícil aceitação racional no mundo antigo.
No seu desenvolvimento histórico, o profetismo judaico apresenta certos momentos decisivos. A historiografia contemporânea tende a valorizar o aspecto que o fenômeno adquiriu em um determinado período histórico, entre o X e o VI século a.C. (BLENKINSOPP, 1996, p. 6). Esse período tem início em torno de 1000 a.C. quando, em parte, pela fragilidade circunstancial das grandes potências regionais, os hebreus conquistaram a sua independência política. O fizeram primeiro de forma unitária, sob Saul, David e Salomão, e depois de forma fragmentada nos reinos de Israel, ao norte, e Judá ao sul. Esse período de autonomia terminou com a destruição de Israel pelos assírios, em 734-722, e de Judá pelos babilônicos, em 586. Alguma soberania nacional foi restabelecida, por fim, com a conquista da Babilônia pelos persas, em 539. No decorrer desses momentos, amadureceram as questões básicas do pensamento profético. Neles atuaram diversos profetas que, de diferentes maneiras, declinaram não só algumas implicações gerais e particulares dessa relação entre o humano e o divino, mas também os elementos identitários judaicos nela imbricados. Os textos relativos a esse período encontram-se, em sua maioria, na porção da bíblia hebraica conhecida como Nebi’im. Englobam tanto os livros históricos onde aparecem profetas que não deixaram textos escritos, como Elias e Eliseu, quanto os livros cuja autoria é atribuída a profetas específicos. Neste último caso, Isaías, Jeremias e Ezequiel são os mais extensos, e Oséias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias, os de menor extensão.
Numa perspectiva geral, os autores tendem a concordar que, em sua forma final, muitos dos livros proféticos contidos em Nebi’im datam do período persa. Defende-se, igualmente, que o período persa foi fundamental não apenas na consolidação dessa literatura profética, mas também “na formação das tradições legais em sua forma escrita final” (BLENKINSOPP, 1996, p. 11). Mas é razoável supor, como assegura Blenkinsopp, que, antes de suas derradeiras edições, pequenas coleções de textos tenham sido elaboradas durante a vida dos profetas, pelos próprios ou discípulos e transmitidos pelas gerações subseqüentes (BLENKINSOPP, 1996, p. 13). Isso significa que guardam, em suas estruturas, não apenas a marca de um redator final, mas também os elementos das épocas em que foram elaborados.

ABORDAGENS TEÓRICAS DO TEMA

O surgimento dos estudos contemporâneos sobre a tradição profética judaica está relacionado à ampliação do conhecimento da Antigüidade do Próximo Oriente. Principalmente, portanto, após a tradução e interpretação dos textos egípcios e cuneiformes, no decorrer do século XIX. Rompeu-se então, de forma sustentada do ponto de vista documental, com as perspectivas exclusivamente racionalistas, idealistas ou românticas, mas basicamente ensaísticas, que proliferaram a partir do século XVIII. O pioneiro trabalho que repercutiu os novos estudos de Antigüidade foi o de Gustav Hölscher, Os profetas, de 1914. A tese de Hölscher, sob o ponto de vista da história das religiões, foi a primeira a chamar a atenção para o contexto mais amplo do assunto, afirmando que o profetismo era, na verdade, uma experiência religiosa característica da Ásia Menor, Síria e Palestina. A Bíblia reconhecia tal fato (por exemplo, Jeremias, 27: 1-15), mas Hölscher problematizou o tema. Ele afirmou que o profetismo era um fenômeno próprio não de grupos sociais nômades, como outrora foram os judeus, mas sim das culturas agrárias da região. Asseverou, portanto, que seus elementos gerais teriam sido assimilados de seus vizinhos pelos hebreus. Tratava-se de uma tentativa de dimensionar historicamente a tradição profética para além dos limites teológicos da discussão, aceitos pelas diferentes confissões religiosas, cristãs ou judaicas.
Essa mesma tendência instalou-se nos estudos de crítica histórico-literária que buscavam trabalhar com as estruturas dos textos e, assim, tentar resolver o problema das origens históricas do profetismo e de seus conceitos básicos. É o caso de Hermann Gunkel (1923), para quem a essência da experiência profética era a questão da identidade com Deus e com seus desígnios em história e de S. Mowinckel (1914), que levantou as associações entre certos profetas e as instituições do Templo. Nesta última direção, um criticismo mais específico permitiu a depreensão da existência de sub-tradições proféticas, quer institucionais ou não, quer regionalmente identificáveis. Por exemplo, Hans Walter Wolff (1964) propôs a filiação de Oséias com a tradição da pregação levítica do reino do Norte e de Amós com a tradição sapiencial da monarquia em Judá (WOLFF, 1973).
Um autor com grande influência teórica nos estudos do profetismo judaico foi Max Weber. Ao reafirmar uma perspectiva histórica do assunto, Weber entendeu o profetismo como originário dos conflitos decorrentes da passagem da federação tribal para a monarquia em Israel. Derivou daí a explicação para o discurso antiinstitucional dos profetas, sobrevivência de formas arcaicas de “êxtase guerreiro”, resistentes à complexidade institucional da monarquia (WEBER, 1963). Num outro momento, Weber classificou o profeta na figura do “indivíduo dotado de carisma”, o que o libertaria da necessidade de reconhecimento institucional – desempenhando a profecia, do ponto de vista histórico, tanto um papel desestabilizador quanto conservador (WEBER, 1963).
Nas últimas décadas os estudos históricos sobre o assunto têm evitado generalizações e procurado centrar as discussões na análise de profetas específicos. Há certas dificuldades operacionais para isso, já que a arqueologia dá poucas evidências para iluminar os períodos em questão, e os textos proféticos, segundo Blenkinsopp, contêm poucas passagens biográficas e autobiográficas as quais, muitas vezes, são obscuras (BLENKINSOPP, 1996, p. 32). Mas parece consenso que não se deve crer em um único tipo de profetismo do ponto de vista histórico, mas em diversos. Alguns profetas parecem, como Samuel, ter surgido em círculos próximos ao poder. Outros aparentam ter desempenhado algum tipo de trabalho agrário antes do chamado, como Eliseu, e assim por diante (BLENKINSOPP, 1996, p. 33).
Blenkinsopp defendeu a existência de, pelo menos, uma distinção visível entre o que chamou de profecias metropolitana e provincial. Tendo ambas como objetivo a reconciliação do povo judeu com Deus, expressariam, no entanto, tendências políticas e sociais distintas. Por exemplo, em Miquéias, vindo do centro provincial de Moreshet, a sudoeste de Jerusalém, encontrar-se-ia uma radical e aguda crítica das instituições. Esta não seria totalmente verificada em outros profetas, porventura ligados à autoridade central ou ao Templo. Seria essa tensão social que influenciaria, na sua opinião, as dimensões sociais do Deuteronômio (BLENKINSOPP, 1996, p. 3), cuja elaboração data do período final da monarquia. Ele sugere que uma das razões para a redação e promulgação dos códigos de leis é precisamente “neutralizar os desconcertantes e geralmente contraditórios apelos dos profetas” (BLENKINSOPP, 1996, p. 15), isto é, atender às demandas dos setores periféricos ou subalternos. A legitimação religiosa da fala profética não parece deixar dúvidas de seu poder transformador social. “A fórmula característica ‘assim falou Iahweh’, indica que o profeta vê a si mesmo como um intermediário entre o povo e o seu Iahweh [...] o que leva muitas vezes a um conflito com as autoridades e jurisdições estabelecidas nas esferas política e religiosa” (BLENKINSOPP, 1996). Na sua opinião, portanto, a presença de preocupações sociais nos textos bíblicos adviria precisamente dessa tensa e complexa relação entre os profetas e o poder.
Segundo Blenkinsopp, à maneira de Weber, parece evidente a existência de uma íntima associação histórica entre o amadurecimento do profetismo judaico e a instauração da monarquia. Observemos que Samuel unge tanto Saul quanto David, e é a perda do suporte profético do primeiro que causa a desestabilização do regime. É com Samuel que o profetismo de Nebi’im tem seu início, já que, a partir desse momento, as chamadas divinas tornam-se freqüentes, generalizadas e altamente politizadas. O envolvimento de indivíduos e grupos proféticos em política, na ascensão e na queda de governantes e dinastias significa que profecia foi desde o princípio um fenômeno problemático. A instabilidade política do reino do norte, decorrente de um intervencionismo militar permanente, em oposição à estável permanência da dinastia davídica no sul, estaria relacionada à força do profetismo em Israel, donde a equação weberiana de uma relação entre profetismo e militarismo encontrar algum eco documental.
O que podemos dizer é que a sociedade judaica durante esse longo período esteve tomada por uma profunda insatisfação religiosa, social e política. As respostas dadas a essa crise, no entanto, não podem ser totalmente explicadas apenas por variáveis objetivas. Os profetas tentavam lidar, além desses elementos concretos, com as grandes questões da existência. E foi o pano de fundo do judaísmo que forneceu as bases para o entendimento dos processos em curso. Os princípios jurídicos e éticos tradicionais e as concepções teológicas sobre os mistérios da existência e seu desenvolvimento delinearam as respostas proféticas. Como em algumas outras experiências históricas de construção de soluções para assuntos particulares, alcançou-se uma percepção profunda da totalidade, cujo impacto foi crucial para a construção da identidade religiosa do povo judeu. As especulações feitas pelos profetas sobre a natureza dos pactos políticos e sociais e das transformações históricas, sobre as responsabilidades sociais e a realidade da condição humana tiveram um efeito duradouro na consciência das sociedades do Próximo Oriente e, por meio do cristianismo e do islamismo, que reivindicam essa herança, do resto do mundo. O nosso objetivo nesse estudo é apontar a singularidade e a relevância do profeta Amós na fundamentação das grandes linhas do pensamento profético.

AMÓS E SEUS CONTEXTOS

Após a morte do Rei Salomão (circa 930/922 a.C.), o Estado centralizado fundado por Saul e David entrou em colapso. Antigos e recentes ressentimentos que opunham as tribos do norte à tribo de Judá foram decisivos para a ruptura institucional que culminou no surgimento do Estado de Israel. Este recusou a continuidade da dinastia davídica e escolheu seu próprio rei, Joroboão, o primeiro de uma seqüência caótica de dezenove monarcas (KUHRT, 1995, p. 468). Um longo período de retração política na Mesopotâmia, Egito e Anatólia favoreceu, como já foi mencionado, a existência independente dos hebreus. Essa fase, no entanto, começou a encerrar-se com a segura emergência da Assíria.
A partir de 745 a.C. os assírios iniciaram sua expansão. Seu poder acabou por estender-se sobre quase todo o Oriente Próximo, até o Egito. O Estado de Israel foi conquistado em 722. O Império Assírio foi o primeiro de uma série sucessiva de poderes hegemônicos no Mediterrâneo Oriental. Judá seria arrasada no decorrer da posterior expansão babilônica. A tentativa judaica de reconquistar e consolidar a independência, séculos depois, sob a dinastia dos asmoneus, terminou no transitório regime de Herodes e, finalmente, no domínio romano. Durante esse período, por duas vezes, o templo de Jerusalém foi destruído, a primeira pelos babilônios, a segunda pelos romanos e inúmeras vezes profanado. Sem condições de enfrentar tais poderes continentais, portanto, os judeus atravessarão a partir da expansão assíria quase mil anos de vicissitudes que culminarão na derradeira e trágica revolta de Bar-Kokhba, no século II a.C.
As impressões escatológicas advindas de todo esse processo, ao longo de seu desenvolvimento, são agudas e marcadas pela crença na futura restauração da paz, unidade e harmonia do reino de David, mediante um seu descendente. Implicaram, de forma original, na gradual valorização do processo histórico como a dimensão por excelência para o entendimento das ações divinas. Essas idéias aparecem, por exemplo, culminadas no helenístico Livro de Daniel, que contém uma reflexão retrospectiva sobre todo esse processo histórico. Ali, Nabucodonosor sonha com um gigante de pés de barro (Daniel, 2: 31). Desse sonho se depreende que, após a sucessão de quatro grandes impérios, advirá um “reino que jamais será destruído” (Daniel, 2: 44). A ameaça assíria, portanto, inaugurou uma fase de dificuldades e incertezas. Os contemporâneos a verão – e com razão – com grandes e sinistras preocupações, e os pósteros, como o início de um grande e terrível ciclo de brutalidades, dotado, no entanto, de um profundo significado religioso. As obras dos profetas foram escritas e reescritas tendo em vista essa realidade religiosa e suas inúmeras implicações conceituais. Amós, no período da expansão assíria, é um dos primeiros a pensar no significado e movimento da história como um espaço por excelência para refletir sobre a ação de Deus. Lança, portanto, as bases de um pensamento que irá adquirindo consistência cada vez maior nos séculos subseqüentes.

AMÓS

O livro atribuído a Amós é o terceiro, segundo na septuaginta, da parte de Nebi’im que reúne os textos dos doze profetas ditos “menores”. No entanto estabeleceu-se, no estudo crítico da obra, a sua precedência cronológica. Isso parece tornar Amós o mais antigo dos profetas a deixar escritos. A versão final do documento é certamente uma recriação deuteronomística, isto é, dos historiadores e teólogos dos momentos finais da independência e do período do exílio na Babilônia (após 586 a.C.), de um texto anterior (provavelmente posterior a 722) oriundo de Judá. Origem inferida por conta da centralidade que ali assume Jerusalém. Nele estão interpoladas construções típicas deuteronomísticas, que também encontramos em Reis (BLENKINSOPP, 1996, p. 74). Por exemplo, o procedimento de datar os acontecimentos a partir da correspondência sincrônica dos reis de Israel e Judá.
Era preocupação dos editores que viveram naquela época, principalmente após a conquista de Judá pela Babilônia, consolidar as tradições orais e escritas e entender as ações proféticas num plano mais amplo de determinações divinas. Nestas, os profetas teriam sido interlocutores e anunciadores. Amós foi visto, por esses autores, como um daqueles que, na época da independência política, apontou o inevitável colapso da ordem existente, por conta dos pecados dos homens e das reações divinas a essas transgressões, dadas no interior da história. Não nos parece, no entanto, que o tema da valorização da história contido em Amós deva ser entendido como uma interpolação deuteronomística. O mais certo talvez seria dizer que a história deuteronomística, em seus elementos teóricos mais gerais possui suas raízes na obra dos profetas anteriores, entre eles Amós. Se a legislação social do Deuteronômio parece ser uma resposta parcial à pregação profética, a concepção histórica deuteronomística talvez possa ser entendida como fruto de conceituações inicialmente defendidas pelos profetas.
Amós, apesar de nascido em Judá, viveu em Israel, segundo consta, sob o reinado de Joroboão II (786-746) enquanto governava Judá o rei Uzziah (783-742). Foi testemunha e interlocutor das ansiedades do período que antecede a fase do colapso da existência independente dos judeus. O texto o designa como pastor, nascido em Tekoa, uma vila a sul de Belém, em Judá. Ele mesmo se qualifica como “pastor e cultivador de sicômoros” (Amós, 7:14), o que nos permite, como diversos autores o fazem, entendê-lo como oriundo de algum tipo de setor rural proprietário periférico. Provavelmente um “provincial” segundo a tese de Blenkinsopp. Marginal, de qualquer forma, à estrutura do Estado e provavelmente vítima de suas políticas tributárias. Apesar de não se considerar um profeta, “não sou profeta nem filho de profeta” (Amós, 7:14) – provavelmente por discrição religiosa –, afirmou que Deus lhe tirou de “junto do rebanho” e lhe disse: “Vai, profetiza a meu povo, Israel!” (Amós, 7:15).
Weber entendeu a ação de semelhantes profetas como demagógica e panfletária (WEBER, 1968, p. 444-446). No caso de Amós, seu discurso era dirigido a toda a sociedade, e não apenas aos integrantes da corte, como era comum entre muitos “profetas” gentios e judeus metropolitanos. Numa das poucas passagens biográficas do texto, Amasias, sacerdote em Betel, denuncia Amós como conspirador ao Rei, porque teria profetizado que “Jeroboão morrerá pela espada e Israel será deportado para longe de sua terra”. Amasias, temeroso da ação política e agitadora profética, pede a Amós que vá para Judá e passe a profetizar lá (Amós, 7:10-17). Podemos assim visualizá-lo como um agitador social, atuando junto aos povos à revelia das instituições existentes. Essa “função” marginal não é estranha à maior parte dos profetas, e a história de confrontos com as autoridades constituídas é freqüente nos textos.
Tal fenômeno era em parte decorrente da idéia de que Deus encontra-se livre de toda a realidade, mas não existe nenhuma relação natural no universo que se encontre liberta da sua capacidade de intervenção. Tendo em vista as preocupações sociais e coletivistas da tradição legal judaica, entendidas como inspiradas, é de se supor que um dos eixos divinos de ação fosse exatamente a reafirmação da justiça que deveria presidir as relações entre os homens. A ação profética, portanto, considerada como meio ou instrumento de intervenção divina, não tinha por que se prender a hierarquias dadas. Pelo contrário, quanto mais corruptos os poderosos, menor seria em princípio a sua disponibilidade profética de promover a realização da justiça. Assim, não necessariamente o profeta era um homem de poder. De forma diferente dos costumes vigentes no Mediterrâneo oriental, por exemplo, onde as hierarquias eram entendidas como naturalmente dadas, a única relação naturalmente dada no judaísmo era aquela que implicava no poder absoluto do divino, diante do qual reis e escravos são iguais. A sociedade judaica, portanto, estava totalmente aberta à sua crítica interna, não institucional, precisamente pelo fato de que as escolhas divinas eram livres e social e juridicamente direcionadas – o que sempre alcançava e feria os poderes e interesses consolidados entre os mesmos judeus.
O mais significativo era, portanto, o conteúdo da ação profética, isto é, a crítica religiosa, ética e humanista das relações humanas. Poucos sistemas da Antigüidade eram tão humanistas nas suas proposições, já que se entendia que o divino voltava-se prioritariamente para o humano, no estabelecimento da justiça de suas relações. A pólis grega certamente era restrita no reconhecimento dessa humanidade, o budismo indiano ampliava a dignidade a outros tantos seres que não os humanos, mas o judaísmo profético era essencialmente centrado no humano e no funcionamento digno da sociedade humana – principal objeto, assim se defendia, da preocupação divina. Profetas posteriores, em Israel e Judá, desenvolverão esses elementos de leitura da sociedade e da humanidade e os refinarão. Mas o pioneirismo literário de Amós o coloca em um lugar especial na consolidação de uma tradição e no estabelecimento dos parâmetros da crítica profética.
A primeira parte de Amós trata das nações do Próximo Oriente da época e das atrocidades por elas realizadas. Amós defende no texto a idéia de que os atos de violência e injustiça suscitaram em Deus a necessidade de uma resposta vingadora. A lógica de tal resposta divina, num mundo aparentemente entregue à ganância e crueldade, é a da punição generalizada dos homens. Basicamente por aviltarem os interesses coletivos e se subtraírem à relação de temor ao divino, isto é, às suas determinações humanitárias gerais. Assim, Damasco será punida por Deus, porque esmagou Galaad “com debulhadoras de ferro” (Amós, 1:3). Filistéia, “porque deportaram populações inteiras” (Amós, 1:6). Tiro, “porque entregaram populações inteiras de cativos” (Amós, 1:9). Edom, “porque perseguiu a espada o seu irmão” (Amós, 1:11). Amon, “porque abriram as entranhas das mulheres grávidas de Galaad” (Amós, 1:13). Moab, “porque queimou os ossos do rei de Edom” (Amós, 2:1). E, além dessas nações estrangeiras, também Judá e Israel serão condenadas. Judá, “porque desprezaram a lei de Deus e não guardaram os seus decretos” (Amós, 2:4). Israel, porque, entre outras coisas, “esmagam sobre o pó da terra a cabeça dos fracos” (Amós, 2:7).
Foi introduzida aqui, portanto, a tese da universalização das responsabilidades, da qual não estavam eximidos os judeus. Também eles tornaram banais e corriqueiros atos inaceitáveis de violências. A condenação de Deus remete-se, portanto, a todo processo histórico, cujos frutos são necessariamente trágicos em função da dinâmica atroz de seu desenvolvimento. Tais ações punitivas divinas não advêm apenas, portanto, de causas naturais, como freqüentemente é mencionado nos textos bíblicos, inclusive em Amós, mas dão-se também por meio de acontecimentos políticos, no interior da História. Como escreveu certa vez Heschel, no judaísmo, o “Deus de Israel fala realmente por meio de eventos na história” (HESCHEL, 1999, p. 200). “O judaísmo” – continua – “tenta apontar para um nível de realidade onde os eventos são a manifestação de uma norma divina, onde a história é entendida como a realização da verdade” (HESCHEL, 1999, p. 204). Essa é certamente uma das teses básicas da história deuteronomística, antecipada aqui por Amós.
Na opinião de Amós, os diferentes setores dominantes da sociedade israelita encontravam-se alheios diante desse processo, que é, em sua dimensão visível, o movimento internacional de erosão de uma ordem anteriormente tida por estável. São alheios, principalmente, de sua responsabilidade em tal processo e, por isso, incapazes de perceber o significado mais profundo de toda a crise em curso. Esse alheamento assegura o predomínio da insensatez e é, na opinião do profeta, fruto das contradições internas da própria sociedade de Israel, nas quais todos estão prisioneiros. Tal distanciamento da realidade, ou das determinações divinas, é uma ação cúmplice que se articula nesse quadro geral de colapso. De fato, a disparidade entre uma aparente prosperidade dos setores hegemônicos da sociedade e a existência de um quadro brutal de injustiças sociais é um dos principais pontos de sua denúncia. Essa realidade compromete não só a capacidade dos líderes, mas toda a sociedade e estabelece a situação geral do seu colapso – não apenas material, social ou político, mas também religioso. Por isso, aquele que sabe, como o profeta, que entende o que se passa, tem dificuldade de ser ouvido por seus contemporâneos e “se cala, porque esse tempo é de desgraça” (Amós, 5:13).
Os grupos dominantes da sociedade israelense da época viviam, segundo Amós, em “palácios de inverno e verão ornados de marfim” (Amós, 3:15). Estavam “deitados em leitos de marfim, estendidos em seus divãs... bebem crateras de vinho e se ungem com o melhor dos óleos” (Amós, 6:4-6). E por outro lado, “não agem com justiça [...] aqueles que amontoam opressão e rapina em seus palácios” (Amós, 3:10). “Vendem o justo por prata e o indigente por um par de sandálias... e tornam torto o caminho dos pobres” (Amós, 2:6-7). “Oprimis o fraco e tomais dele um imposto de trigo [...] hostilizam o justo, aceitam suborno e repelem os indigentes à porta” (Amós, 5:11-12). “Esmagais o indigente e quereis eliminar os pobres da terra” (Amós, 8:4). As críticas aos rituais sacrificiais (Amós, 4:4-5 e 5:21-24) não são apenas críticas à idolatria, mas também objeções de natureza social. De fato, tais cerimônias dispendiosas oneravam os povos e eram sustentadas por contribuições compulsórias (BLENKINSOPP, 1996, p. 81).
A ação divina dá-se no interior dos processos históricos, na condenação de todas essas violências mediante uma seqüência de reações. Específicas aos poderosos: “eles serão exilados à frente dos deportados, e terminará a orgia daqueles que estão estendidos” (Amós, 6:7); e gerais a todos: “entregarei a cidade e o que nela se encontra. E acontecerá que, se dez homens restarem em uma casa, eles morrerão!’ (Amós, 6:8-9). Como Heschel afirmou certa vez:

os profetas nos lembram sobre o estado moral de um povo: poucos são culpados, mas todos são responsáveis. Se nós admitimos que o indivíduo é, em alguma medida, condicionado ou afetado pelo espírito da sociedade, um crime individual revela a corrupção da sociedade (HESCHEL, 1975, p. 16).

Essa punição generalizada, portanto, partia da crença na responsabilidade global e universal pelas misérias e tragédias da condição humana. O poder despótico existe porque todos são dele cúmplices, já que as suas loucuras irreligiosas deveriam bastar para desautorizá-lo e promover o seu fim – ou a voz do profeta seria suficiente para a sua supressão. O “dia de Deus” (Amós, 5:18), o momento em que o Criador atuará de forma irada contra os seres humanos é, entre outras coisas, um chamamento divino à responsabilidade dos homens diante de seus atos.
Amós avançou por fim num dos elementos mais significativos do discurso profético e de inumeráveis conseqüências para a história das idéias religiosas no Ocidente. Ele afirmou o caráter universal da Lei. Não se deve esquecer que, nessa época, as concepções ou as regras religiosas e jurídicas tinham basicamente legitimidade social e étnica. Seus limites de validade terminavam nas fronteiras de uma determinada cultura, povo ou grupo social, ou na amplitude de sua área de influência ou autoridade. A idéia de uma universal disseminação da humanidade, tanto no âmbito cultural quanto, principalmente, social, era muito difícil de ser equacionada em sociedades etnocentradas e profundamente hierarquizadas. Com razão se aponta o pensamento de Buddha como um dos primeiros, em torno do século VI a.C., a depreender inclinações universais humanas e pretender formular um sistema de validade universal. Mas os profetas também foram pioneiros, sob bases absolutamente distintas das de Buddha, no processo de entender a humanidade como uma totalidade cultural e social. O monoteísmo judaico, com efeito, trouxe junto consigo a idéia de que todos os homens apresentavam uma qualidade comum, a de serem descendentes de um mesmo ancestral criado “à imagem e semelhança”.
Com os profetas, o judaísmo amadurece como um sistema religioso de validade universal. Amós afirma, com efeito: “Vocês são para mim como os cuchitas, ó filhos de Israel – palavra de Iahweh. Não fiz Israel subir da terra do Egito, os filisteus de Caftor e os arameus de Quir?” (Amós, 9:7). Isto é, todos os homens são iguais em suas grandezas e misérias. Se o pacto entre Deus e os judeus é especial, isso não torna os judeus diferentes dos outros homens. Quando, mais tarde, Isaías escrever: “Eu virei, a fim de reunir todas as nações e línguas; elas virão e verão a minha glória... de todas as nações trarão todos os vossos irmãos como uma oferenda a Deus [...]” (Isaías, 66:18-20). Essa idéia será reafirmada: o pacto com os judeus é especial, mas possui validade universal, e todos os povos deverão, um dia, nele entrar. A ética religiosa judaica e as suas regras não dizem respeito apenas aos judeus, mas a todos os homens e é, levando em conta seus princípios, que Deus atua na história. Não apenas na história dos judeus, mas na história da humanidade. A ampliação dos horizontes religiosos do judaísmo será realizada numa escala nunca antes tentada por qualquer dos sistemas da Antigüidade no Ocidente.
Amós, portanto, representa um marco fundamental na gênese dos principais elementos do profetismo judaico. Ele introduziu no mundo antigo a crença na universalidade tanto da condição humana quanto de princípios éticos de perfil coletivista e igualitarista. Tais idéias, como sabemos, deram a tônica de grande parte dos processos que, a partir de então, tiveram lugar no Mediterrâneo Oriental e, depois, no mundo.
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Bnei Anusim Retornam ao Judaísmo no Brasil


28/02/2014 - 21:41 - Durante os dias 17 à 20 de fevereiro a Congregação Judaica P´nei Or coordenou trabalho para o retorno de Bnei Anusim ou “filhos dos forçados” (descendentes de judeus perseguidos pela Inquisição), na sua sede, na cidade de Petrópolis, Rio de Janeiro. O Beit Din (Tribunal Rabínico) foi presidido pelo Rabino Abraham Deleon Cohen, da Abarbanel Foundation de Miami (EUA) e seguiu todas as determinações daHalachá (Lei Judaica).

Rabino Deleon, é membro da Rabinical Association of Greater Miami e também do IFR - International Rabbinic Fellowship, Nova Iorque, EUA. É conhecido pelo se trabalho em várias comunidades de Bnei Anusim em países da América Latina, Europa e África. Além disso, exerceu os cargos de Rabino no Peru, na Colômbia e nos estados norte-americanos de Connecticut e Carolina do Norte.

Ao todo, 19 pessoas foram selecionadas para o processo, sendo avaliadas pelo Beit Din em diversos quesitos: documentações relacionadas à descendência, práticas judaicas em família, além das questões Haláchicas (de lei judaica). Todas passaram por entrevistas pessoais, para checagem das informações coletadas, além de avaliar seus conhecimentos e real desejo com relação ao Judaísmo. Vale lembrar que estes selecionados são uma ínfima parcela das inúmeras pessoas de várias partes do Brasil que candidataram ao Beit Din.

Em seguida, os candidatos fizeram uma declaração pública ao Beit Din, de compromisso com a Fé Judaica, renunciado a quaisquer resquícios de práticas religiosas do passado. Todo o processo envolveu Mikvê (imersão ritual), Brit Milá (circuncisão, no caso dos homens), além de muito empenho por parte de pessoas que vêm praticando e estudando Judaísmo há anos e pela primeira vez tiveram a oportunidade de estar em uma sinagoga, de fato. Candidatos vieram de Belém (PA), Porto Alegre(RS), Curitiba (PR), Ilhéus (BA) e Petrolina (PE), Juiz de Fora (MG), Nova Iguaçu (RJ) Itaboraí (RJ), Niterói (RJ) e Rio de Janeiro (RJ).

O Beit Din, que atuou durante quatro dias na sinagoga, finalizou seu trabalho com a entrega dos certificados de retorno (dentre os quais sete foram conversões), Bar e Bat Mitzvá, além das Ketubot(contratos religiosos de casamento). A cerimônia foi prestigiada por personalidades da Comunidade Judaica carioca, em especial sefaradita, que interagiu com os retornados numa bela festa, que coroou o trabalho. Este foi o terceiro Beit Din desta natureza no Brasil. O primeiro ocorreu em 2009, em Porto Seguro (BA) e o segundo em 2012, também pela P´nei Or.

O Brasil possui o maior número de Bnei Anusim em todo o mundo, fruto da terrível perseguição conduzida por séculos durante a Inquisição, que matou milhares de judeus, além de forçar um número ainda maior à conversão ao cristianismo. Segundo a maior autoridade no assunto, a historiadora Dra. Anita Waingort Novinsky, da USP, - que conhece e apóia o trabalho de retorno - existem milhões deles, sendo que hoje o mundo está experimentando como nunca, um despertar de pessoas buscando retornar às suas origens

Isaac Kayat
Presidente da Sinagoga P'NEIOR

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