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As Três Heroínas de Pessach - Morasha

O Seder de Pessach é o mais comemorado dos rituais judaicos. A Hagadá lida nessa cerimônia relata o nascimento do Povo de Israel: a escravidão no Egito, o decreto de genocídio contra os recém-nascidos judeus de sexo masculino, as pragas e os milagres. A libertação de nosso povo, que é o tema central da festa de Pessach, ocorreu graças aos heroísmo e coragem de três mulheres.

A história que a Hagadá transmite é relatada pelo segundo livro da Torá, Êxodo. O relato é bastante famoso: ao longo dos séculos, serviu como fonte de inspiração para milhões de pessoas, judeus e não judeus. A história da escravidão e libertação do Povo Judeu toca a alma e gera grandes emoções – fascina e inspira. É uma lição sobre sofrimento e esperança, desafios e triunfos, milagres e maravilhas, heróis e vilões.

Seus protagonistas são famosos: Moshé Rabenu – o maior profeta e líder judeu de todos os tempos – e seu irmão e companheiro, Aharon – o primeiro Cohen Gadol, Sumo Sacerdote e pai de todos os Cohanim. Há na história muitos heróis anônimos: líderes judeus que sofreram para proteger e preservar o Povo de Israel no Egito.

Seus antagonistas são também lendários. O maior deles é o próprio rei do Egito, o Faraó. Mas ele não age sozinho. Conta com poderosos feiticeiros e astrólogos e com conselheiros que o auxiliam na execução de seus planos malévolos: a escravidão dos judeus e, posteriormente, o extermínio dos meninos e a assimilação das meninas.

O decreto de atirar os recém-nascidos judeus no Nilo se deve a uma previsão feita por esses astrólogos. Eles relataram a Faráo que nasceria um menino que seria o libertador do Povo Judeu, mas que viria a falecer “por meio da água”.

Isso, de fato, ocorreu: a porção de Chukat, no quarto livro da Torá, Bamidbar - Números, relata o famoso incidente que selou a decisão do Eterno de que Moshé não entraria na Terra de Israel. A Torá conta que, com o falecimento de Miriam, D’us fez com que a Fonte de Miriam desaparecesse para que os Filhos de Israel percebessem que a milagrosa fonte da qual fluía água em abundância, e que os acompanhara, até então, em sua longa caminhada pelo deserto, havia sido provida por D’us, pelo mérito de Miriam.

Ao chegarem a Kadesh, no deserto de Zin, onde não há água, os Filhos de Israel, desesperados, clamam a Moshé. D’us então lhe ordena: “Toma o cajado e reúne a congregação, tu e Aaron, teu irmão, e falareis à rocha diante de seus olhos; e dará as suas águas, e tirareis para eles águas da rocha e dareis de beber à congregação e aos seus animais”. A Torá relata que Moshé tomou seu cajado e, com seu irmão Aaron, congregou o povo diante da pedra. “E Moshé levantou sua mão e feriu a rocha duas vezes com seu cajado, e saiu muita água, e a congregação e seus animais beberam”. Mas, a ordem que D’us dera a Moshé era que falasse com a pedra, não que nela batesse. Por ter violado tal ordem Divina, D’us decreta que ele e seu irmão Aaron faleceriam no deserto, não tendo, pois, o mérito de adentrar a Terra Prometida.

Os astrólogos egípcios vislumbraram a consequência de tal incidente. Já que o calcanhar de Aquiles do grande salvador dos judeus era a água, aconselharam o Faraó a lançar todos os recém-nascidos judeus nas águas do Nilo. Essa seria a única forma de garantir a morte do líder judeu, cujo nascimento era iminente. Faraó seguiu o conselho de seus astrólogos e conselheiros. Moshé foi, de fato, jogado no Nilo, mas sobreviveu ao decreto de genocídio e foi o agente Divino responsável pela redenção do Povo Judeu.

Na realidade, o processo de redenção de nosso povo se iniciou antes do seu nascimento, por meio de três mulheres: Yocheved, Miriam e Bitia.

O Livro de Êxodo conta que duas parteiras judias se recusaram a acatar o decreto genocida do Faraó. Segundo a Torá, “as parteiras temeram a D’us e não fizeram conforme o que o rei do Egito lhes dissera, e elas causaram com que os meninos vivessem” (Êxodo 1:17).

A Torá relata que as duas parteiras eram chamadas de Shifrá e Puá. O Talmud revela suas verdadeiras identidades: Yocheved, esposa de Amram, e sua filha Míriam, que, com apenas cinco anos, ajudava a mãe em seu trabalho. Conta o Midrash que, ao ouvir a ordem do Faraó de que todo menino hebreu recém-nascido devia ser jogado no Nilo, Míriam se revolta e diz: “Que rei mais malvado! Pobre de ti quando D’us for te punir”. Só a insistência de Yocheved em afirmar que Míriam era apenas uma criança salvou sua vida da fúria do rei do Egito.
Por “temer a D’us”, as parteiras não só desobedecem as ordens do rei como passam a acudir os recém-nascidos, alimentando-os e escondendo-os. A Torá nos revela que D’us as recompensou por tal ato heroico de desobediência: “D’us construiu Casas para elas”. O Talmud explica que essas casas não foram habitações físicas, e sim, dinastias. Yocheved se tornou a mãe dos Cohanim e Levi’im e um dos descendentes de Miriam foi o Rei David, o maior monarca judeu (Sotá, 11b). Além disso, foram recompensadas por meio do nascimento de uma criança que mudaria a história do mundo. Por ter salvado os filhos de outras famílias judias, Yocheved deu à luz à maior alma que já veio ao mundo: Moshé Rabenu.

Mas o nascimento do maior profeta e líder judeu também se deve à sua irmã, Miriam. Quando o Faraó decretou que todo recém-nascido judeu seria atirado no Nilo, Yocheved e seu marido, Amram – líder do Povo Judeu à época –, se separaram, pois decidiram que era preferível não ter mais filhos a arriscar que Yocheved desse à luz a um menino, que seria morto no Nilo. Foi Miriam quem os convenceu do contrário, dizendo: “Pai, seu decreto é mais severo do que o do Faraó! Ele só decretou contra os meninos, seu decreto estende-se a todas as crianças, meninos e meninas”. Ela, que era uma profetiza, prometeu aos pais que eles teriam um filho que seria o salvador do Povo Judeu (Sotá, 12b-13a).

Mas há ainda uma terceira mulher responsável pela redenção de nosso povo. Seu nome: Bitia, a filha do Faraó. A Torá relata que, no dia em que Moshéfoi posto em um cesto e jogado no Nilo, Bitia foi banhar-se no rio. Ela vê um cesto e um menino que se encontra nele, que chora. Apesar de estar ciente de que se trata de uma criança judia que havia sido lançada ao Nilo devido às ordens de seu pai, a princesa o salva. Relata a Torá: “Ela teve piedade dele e disse: ‘Este é um dos meninos hebreus’ ” (Êxodo 1:6).

Salvar a vida da criança significaria desobedecer a um decreto real. Isso é algo que se poderia esperar de um judeu, não de um egípcio – muito menos de um membro da família real – a própria filha de Faraó.
É notável que Bitia não estivesse só quando tomou essa decisão. Ela se encontrava na companhia de sua serva. Portanto, corria o risco de que seu ato se tornasse de conhecimento público, chegando aos ouvidos reais. Mas nem isso a fez titubear.

Após Bitia ter salvado Moshé do Nilo, ocorre algo extraordinário. Miriam, que havia profetizado que seu irmão seria o salvador dos judeus, permaneceu às margens do Nilo, observando a cesta onde se encontrava a criança. Miriam sabia que seu irmão não pereceria no Nilo. Quando ela vê que a filha de Faraó o recolhera, pergunta a Bitia: “Devo chamar uma mulher judia para amamentar a criança para você?”. “Vai”, responde Bitia. Miriam chama Yocheved e a mãe adotiva da criança diz à verdadeira mãe: “Leva esta criança e a amamenta para mim. Eu te pagarei por isso”.

Tal episódio evidencia a fé e coragem de Miriam. Ela nunca perdeu as esperanças de que seu irmão sobreviveria para salvar seu povo. Miriam tem a audácia de propor à própria filha de Faraó um plano para salvar um menino judeu. Ela sugere que Yocheved, a verdadeira mãe de Moshé, aja como se estivesse amamentando uma criança egípcia até que Bitia possa adotá-lo. Três mulheres – Yocheved, Miriam e Bitia – conspiram para salvar a vida de Moshé do decreto genocida de Faraó.

A Torá, então, nos conta que após o período de amamentação, Yocheved “o trouxe à filha do Faraó e ele foi para ela como filho...” (Êxodo, 2:10).

Apesar das ordens do pai, o poderoso rei do Egito, Bitia adota a criança e a cria no próprio palácio do Faraó – o arqui-inimigo de nosso povo. E o cria como filho. É ela quem dá ao menino o nome de Moshé. Ensinam nossos Sábios: o maior de nossos profetas possuía vários nomes, inclusive aquele dado por seus pais quando nasceu, Tuvia. Mas, na Torá, D’us sempre o chama de Moshé – em reconhecimento à mulher que o salvou e criou. É interessante que o Livro das Crônicas se refere a Moshé como “ben Bitia” – filho de Bitia. Isso porque, apesar de não ter sido sua mãe biológica, a filha do grande vilão da história, salvou, educou e amou Moshé.

Em recompensa por seu heroísmo, ela foi imortalizada pela Torá. Não sabemos qual foi o nome dado a ela quando nasceu: a Torá a chama de Bitia, que significa “filha de D’us”, pois como ensina o Midrash: “D’us disse a ela: ‘Você adotou um filho e o chamou de Moshé, que significa ‘filho’ em egípcio. Eu farei o mesmo: Eu a adotarei e a chamarei de Minha filha’”.

Bitia foi a única egípcia a não ser atingida pelas Dez Pragas. Além disso, ela foi um dos pouquíssimos seres humanos a adentrarem o Mundo Vindouro sem ter falecido. Graças a seu heroísmo e generosidade, além de ser chamada de “filha de D’us” e ser considerada a mãe de nosso maior profeta, ela triunfou sobre o maior desafio da humanidade – a morte. Tal graça Divina não foi concedida nem mesmo a Moshé.

O que Yocheved, Miriam e Bitia nos ensinam

A palavra Torá advém de Hora’á – ensinamento. A Torá não é um livro de histórias, e sim, uma obra de autoria Divina que contém lições para todo o Povo Judeu, em todas as gerações. O heroísmo de Yocheved, Miriam e Bitia serve de exemplo para todos nós. A essas três grande mulheres, nós, o Povo Judeu, devemos nossa liberdade e todas as bênçãos que advieram dela – a Revelação no Monte Sinai, o recebimento da Torá e a Terra de Israel. Mas além de terem desempenhado um papel fundamental na história de nosso povo e da humanidade, essas três mulheres ensinaram lições que, decorridos mais de três milênios, continuam a reverberar. Elas nos ensinaram que mesmo quando há escuridão e maldade no mundo, cabe ao ser humano desafiá-las ao gerar luz e promover a bondade.

A coragem de Yocheved, Miriam e Bitia serve de argumento contra todos aqueles que alegaram ter feito o mal porque não lhes foi dado escolha – porque tinham a obrigação de seguir ordens. O ato de Bitia ao salvar Moshé Rabenu rechaça os argumentos apresentados pelos nazistas nos Julgamentos de Nuremberg.

Das três heroínas de Pessach, Bitia é quem nos ensina mais lições, entre elas, a de que não se deve julgar outros seres humanos por motivo de nacionalidade, etnia ou religião. A salvação do Povo Judeu ocorreu por meio de uma mulher que, além de egípcia – membro do povo que nos escravizava e nos assassinava –, era a própria filha do líder antissemita da época. Foi a filha de um homem responsável por uma campanha de genocídio contra os judeus quem adotou, educou e protegeu nosso maior líder e profeta – aquele que não apenas liderou a libertação do Egito, mas trouxe a Torá dos Céus à Terra e conduziu nosso povo à nossa Pátria ancestral e eterna – Eretz Israel.

Há ainda outra lição a se aprender de Yocheved, Miriam e Bitia: a de que, cedo ou tarde, D’us recompensa abundantemente a bondade, a coragem e a generosidade.

A Torá nos ensina que o Todo Poderoso tem grande afeto por aqueles que cumprem Sua vontade, apesar da oposição e das ameaças daqueles que desejam disseminar o mal e a escuridão pelo mundo. É nos momentos mais difíceis, de maior escuridão, que a luz brilha mais forte e que a bondade e a coragem se tornam mais aparentes.

Pessach é a festa da liberdade. Ensina o judaísmo que o verdadeiro significado da liberdade é o livre arbítrio: o poder de escolher o bem e rejeitar o mal, independentemente de qualquer fator ou circunstância.

As três heroínas da história de Pessach não apenas corroboram o ensinamento de nossos Sábios de que a redenção de nosso povo ocorreu graças às mulheres, mas elas também personificam os temas da festa mais celebrada pelos Filhos de Israel: a liberdade, a desobediência ao mal, a coragem, a dignidade humana e a valorização da vida – temas universais e atemporais, que permeiam o judaísmo e que há mais de três milênios vêm influenciando a humanidade.

BIbliografia:
Rabi Sacks, Jonathan, Exodus: The Book of Redemption. Covenant & Conversation - A Weekly Reading of the Jewish Bible, Maggid Books & the Orthodox Union

Rabi Munk, Elie,The Call of the Torah

Rabi Weissman, Moshe,The Midrash Says

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La narración con la que se recuerda año a año esta celebración casi no menciona al líder que condujo a la liberación de los judíos de la esclavitud en Egipto. ¿Por qué será? He aquí algunas hipótesis…
Por Efraim Zadoff *

Esta pregunta puede resultar un tanto extraña a todo aquél que en la noche del séder de Pésaj lee la Hagadá o parte de ella pero no se detuvo a reflexionar y analizar su contenido y el por qué de la inclusión de ciertos textos en vez de otros. Sin embargo, esta es la realidad: en la Hagadá se menciona a Moshé una sola vez y de un modo casual: "Rabi Iosei de Galilea dice: ¿de dónde sacas que los egipcios sufrieron en Egipto diez plagas y en el mar cincuenta? (…) en Egipto dice… y en el mar dice (Shmot – Éxodo 14:31): Israel vio cuán grande se mostró el Eterno con los egipcios y el pueblo temió al Eterno y creyeron en Él y en Moisés Su siervo".
Sin embargo, la observación de este versículo, que en sí mismo refleja la actitud del libro de Shmot hacia Moshé, podría conducirnos a reflexionar sobre la razón de este cambio radical en la actitud de "las fuentes" a un personaje tan central en la historia de los albores nacionales de las tribus israelitas. Citemos nuevamente estas palabras: "… y creyeron en Él y en Moisés Su siervo". Moisés es un personaje encumbrado, muy por encima de los demás seres humanos y muy cercano a "Él". La narración en el libro de Shmot y en muchos de los libros del canon bíblico sobre la liberación de los hijos de Israel de la esclavitud y su salida de Egipto, presentan claramente la centralidad de Moshé en toda la trama de los hechos.
En realidad, esta ausencia de Moshé en la Hagadá es sólo uno de los grandes cambios que podemos reconocer entre las tradiciones de la festividad de Pésaj tal como está registrada en los libros compilados en el canon bíblico (siglos VIII-V a.e.c.) y las tradiciones que se fueron desarrollando posteriormente. De acuerdo a estas fuentes literarias, la esencia de esta festividad era la de congregarse en el Gran Templo de Jerusalén o en los lugares de culto (una de las tres festividades de este tipo - regalim) el día 14 del mes primero (luego denominado Nisán y convertido en el séptimo del año hebreo). El festejo consistía en sacrificar un cordero y al anochecer comer su carne asada, acompañada de matzot y hierbas amargas, en recordación a que en la décima plaga en Egipto la muerte salteó las casas de los hijos de Israel y sus hijos primogénitos no fueron muertos (Shmot 12: 3-11).
Cambios de este tipo se registraron también en muchas otras tradiciones, que fueron modificadas por los dirigentes culturales y espirituales, para adecuarlas a las necesidades que surgían con el devenir de los acontecimientos en momentos específicos. Por ejemplo: el cambio en el culto religioso tras la destrucción de los dos Templos en Jerusalén, y colocar en el centro del mismo la congregación de las personas y el rezo, en vez de los sacrificios.

Hurgando en posibles explicaciones
Retornemos a nuestra pregunta inicial y a tratar de analizar qué fue lo que motivó a los redactores de la Hagadá de Pésaj y de la nueva versión de esta festividad para evitar la mención de uno de sus principales héroes: Moshé.
Una primera respuesta, que por ser evidente no deja de ser auténtica, reside en las frases de la Hagadá que dicen que: "Adonai nos sacó de Egipto no por medio de un ángel (…) y no por medio de un emisario. Fue él mismo Bendito sea su Nombre (…). Yo y no un emisario. Yo Adonai, Yo mismo y ningún otro". Estas palabras suenan como un eco de una controversia en torno al rol que se podía atribuir a Moshé, en la epopeya de la salida de Egipto, como emisario humano. Y esto viene a enseñarnos que es sólo Dios quien maneja los hilos de los acontecimientos históricos, y no sus servidores los humanos, por más prominentes que sean. Pero hay otras explicaciones que buscan respuestas en el contexto histórico y social.

La redacción de la Hagadá se puede ubicar desde las postrimerías de la época de los asmoneos o finales del Segundo Templo (fin del siglo I e.c.) hasta el fin de la época talmúdica y comienzo del período de los Gueonim (siglo VII e.c.). En total cerca de setecientos años.
Para poder acercarse a una explicación razonable hay que saber que el análisis y la interpretación de los textos bíblicos y sus personajes en esta época por parte de los maestros y los rabinos se hacían esencialmente de acuerdo a la realidad del momento y para satisfacer las necesidades que imponían las circunstancias, y en menor medida para comprender los textos bíblicos en sí mismos.
Durante el reino de la dinastía de los asmoneos, descendientes de Matitiáhu, perteneciente a una de las familias de sacerdotes (cohaním), surgió una dura controversia ya que de acuerdo a los escritos bíblicos el reinado sobre Judá correspondía a la dinastía de David, y había una clara separación entre el poder político, el rey, y el poder religioso, el sumo sacerdote (cohén gadol). Bajo el reinado de los asmoneos, ambos poderes se unificaron en una sola persona. Los que apoyaban esta opción veían su legitimación en Moshé, ya que él asumió el poder político y al comienzo también el religioso (ejecución de los sacrificios rituales – korbanot), y destacaban su pertenencia a la tribu de Leví (y no de Judá como David). En la literatura rabínica clásica hay muchos textos que procuran oponerse a la legitimación de los asmoneos, alejando a Moshé de los roles de líder político y religioso. También los redactores de la Hagadá, apoyaron esta perspectiva. El resultado fue la virtual ausencia de Moshé en la Hagadá.

Una segunda razón debe buscarse en los escritos de intelectuales de las comunidades judías helénicas en Éretz Israel, en las colonias helénicas en la cuenca del Mediterráneo y especialmente en la importante comunidad de Alejandría en Egipto. Entre el siglo II a.e.c. y hasta fines del I e.c. había una prolífica literatura antijudía en griego que acusaba a los judíos, entre otras cosas, de ser traidores al reino y especialmente a Moshé como traidor a su pueblo egipcio, al erigirse como líder de una multitud de leprosos, apátridas e incultos y destructor de sus templos. Escritores judíos helénicos prominentes como el filósofo Filón de Alejandría y el historiador Flavio Josefo, entre otros, asumieron la lucha contra los detractores del judaísmo, y especialmente salieron en defensa de Moshé atribuyéndole cualidades extraordinarias: desde fundador de la cultura universal, de la filosofía y la tecnología, la organización política egipcia y la religión greco-egipcia, hasta la invención de la escritura, las matemáticas y el comercio. En algunos casos llegaron a verlo como un semidiós. Los judíos de Éretz Israel, que temían por sus relaciones con sus vecinos helénicos, sintieron que debían neutralizar estas tendencias por lo que decidieron no mencionar a Moshé en la Hagadá.

A estas dos explicaciones se pueden sumar otras dos, que provienen de las controversias entre los judíos y los primeros cristianos, y entre los primeros y los samaritanos. Los primeros cristianos, en sus esfuerzos por glorificar a Jesús como mesías y salvador lo presentaban como una nueva versión de Moshé. Para ellos Moshé había traído la Ley terrenal, y asimismo anunciaba Jesús que había traído la Ley celestial o el Nuevo Testamento. Al mismo tiempo, tejieron narraciones en torno al origen de Jesús, que recordaban las que se desarrollaron en la literatura israelita en torno al origen de Moshé. En respuesta a estas controversias es que los rabinos decidieron que el rol de Moshé se limitaría al liderazgo de los israelitas desde Egipto hasta Canaán, y cancelaron toda posibilidad de atribuirle algún papel en la venida del mesías, que reservaron a la dinastía de David o de Iosef, y su anunciante sería el profeta Eliáhu. De este modo quisieron evitar a los cristianos toda posibilidad de reforzar su posición sobre la conexión entre Moshé y Jesús.
También la disputa con los samaritanos ocupaba a los dirigentes judíos de aquella época. Los samaritanos atribuían a Moshé poderes sobrenaturales, acercándolo a un carácter más angelical que humano, atribuyéndole el rol de mesías que en el futuro redimiría a su pueblo y a todo el mundo. Al no incluirlo en la Hagadá se aspiraba evitar esta interpretación.

¿En qué medida es todo esto relevante en nuestros días? Así como en la Hagadá de Pésaj se declara que cada judío, en toda generación, debe sentirse como si él mismo salió de Egipto y se liberó de la esclavitud, a mí parecer cada generación y cada visión del judaísmo debe narrar la epopeya tradicional de nuestra cultura nacional en el contexto en el cual vive y de un modo relevante a su existencia. Es así como en los últimos cien años, y también en el presente, se redactaron múltiples versiones de la Hagadá, que se leen a veces junto con la tradicional y a veces combinándola con ella. Tal vez llegó el momento en que integremos a Moshé en la Hagadá, como imagen de líder que asumió la responsabilidad, aun sin sentirse apto para ello, de conducir a su pueblo a la libertad y a un futuro mejor.

* Miembro de la dirección del Consejo de Rabinos Laicos Humanistas de Israel – MERJAV.

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Pessach e a "Difícil liberdade" Jayme Fucs Bar

Estava lá eu sentado no seder de Pessach do Kibutz Nachshon em 1983, era o meu primeiro seder comunal em Israel, nunca tinha vivenciado um seder assim tão diferente do costume dos anos que eu vivi no Brasil. As mesas estavam devidamente postas e arrumadas, o palco muito bem decorado com a seguinte frase que se destacava para todos: “Chag Herut Sameach! Feliz Festa da Liberdade!”

Essa Frase chamou a minha atenção! A palavra Liberdade era parte integral da leitura da Hagadá que relatava a saída do povo Hebreu do Egito em busca de, como bem definiu Emannuel Levinas, essa “difícil liberdade”.

Eu pessoalmente me defino como um judeu secular Humanista, mas independente de como você se defina. a liberdade é um direito Universal reservado a todos – sejam religiosos, tradicionalistas, seculares, judeus e não judeus – todos nós necesitamos dessa “difícil liberdade”! Muitos de nós não temos a consciência de que essa festividade, o Pessach – Chag Herut – é comemorado há mais de 3.300 anos! Cada geração em seu tempo reflete sobre essa magnifica história de Pessach, que em Hebraico significa passar! Passar da escravidão à plenitude da liberdade.

Pessach é sem dúvida a primeira revolução social registrada da humanidade, onde escravos se revoltam contra seus opressores. Pessach se tornará o símbolo das lutas sociais e políticas de todos os tempos, se incorporará nos gritos de liberdade dos oprimidos que sentiram a aflição da fome e da miséria, e não é por acaso que a Hagadá de Pessach começa com estas palavras: “Este é o pão da aflição que nossos ancestrais comeram no Egito. Deixe que todos os famintos venham e comam“.

Comemos a cada ano o “pão da aflição” para lembramos não somente que fomos escravos no Egito mas que ainda existem muitos seres humanos subjugados a tirania, fome e opressão!

A frase Chag Herut (A Festa da Liberdade), me acompanha em meus pensamentos por todos esses anos que vivo em Israel, como se fosse uma prece ou um desejo sagrado de manter com todas as forças em minha vida essa “difícil liberdade”!

Como sempre no pensamento Judaico, nada é tão simples – principalmente quando o tema é liberdade. A prova disso é a impressionante passagem do diálogo que Moisés tem com o Criador e o seu pedido de “Liberte meu povo”. A resposta do Criador a Moisés é ainda mais complexa para o nosso entendimento humano, o Criador responde a Moisés “Herut AL Tenai” (Liberdade condicional). Essa resposta é o verdadeiro mistério do Pessach e ainda hoje é um grande enigma! O que o Criador quis dizer a Moisés com “Liberdade condicional”? Quais seriam essas condições para que o povo seja realmente livre?

Interessante que na travessia do Mar Vermelho os egipcios são afogados durante a perseguição dos hebreus e o povo comemora com alegria a destruição do outro, mas o Criador repreende dizendo “minhas criaturas se afogam no mar e vocês entoam cantos!?” como se quisesse dizer que o direito a vida ao Povo hebreu estava condicionado a vida de outros povos também.

Com certeza uma carga de responsabilidade enorme vai ser determinada ao povo judeu, onde sua liberdade estará sempre sob condições a liberdade do outro. Mas que condições são essas para se garantir uma vida de Liberdade?

Espinosa que foi excomungado e obrigado a abandonar sua comunidade para garantir a liberdade de seu pensamento, com certeza responderia que ser livre sob condição era agir de acordo com a sua natureza e que apenas através da liberdade é que o homem pode se expressar em sua totalidade.

Jean Paul Sartre conhecido como representante do existencialismo nos alertaria que os seres humanos nascem para serem livres. Mas, liberdade significa também responsabilidade.

O grande sábio Emannuel Levinas nos diria que a nossa liberdade está sob condição da liberdade do outro. Eu não sou livre se o outro não é livre.

O polêmico mestre Yeshayahu Leibowitz, quando o perguntavam se o Messias estava para chegar, ele respondia com toda a sua devoção “Ele virá! Ele virá! Ele virá! Mas todo Messias que vier será um Messias falso!” E ao ser questionado como poderia ter tanta devoção sobre o Messias e ao mesmo tempo negá-lo, Leibowitz dizia que a nossa liberdade está totalmente condicionada à liberdade dos outros seres humanos, somente quando todos seres humanos forem livres poderá chegar a redenção e o Messias.

 

Será que somos realmente livres?

Depois da libertação como escravos no Egito e a liberdade na Terra de Israel, a nossa “difícil liberdade” será posta à prova em diversas situações durante a história judaica: seremos invadidos, dominados, exilados e escravizados por novos opressores e tiranos vindo da Babilônia, Pérsia, Grécia, Roma; seremos espalhados pelo mundo, passaremos por perseguições religiosas, humilhações, inquisições, pogroms e o Holocausto – a maior opressão e extermínio humano da historia da Humanidade! As palavras liberdade, democracia e Humanismo ganham um novo sentido depois do Holocausto!

Rabi Yehudah Leow, o Maharal de Praga, perguntava-se como o povo judeu poderia ter celebrado sua libertação do Egipto durante os tempos em que estavam mergulhados novamente nas trevas do exílio e perseguição e opressão?

 Mas acreditem: Milagre existe e ele é feito por Homens e Mulheres!

A Criação do estado de Israel depois de 2000 anos no exílio é um milagre realizado por Homens e Mulheres! Novos Moisés e Miriams nos libertaram de um novo Egito, abrindo mares vermelhos de sangue, luta e sofrimento de uma longa trajetória de exílios, atravessamos desertos de promessas de uma Europa de igualdade, liberdade e fraternidade e dançamos em volta de bezerros de ouro criado pela ilusão do Stalinismo.

Terá esse povo que passar por tudo isso, para poder chegar de novo a sua terra prometida, e poder ouvir a mesma pergunta feita a 3300 anos atrás: “Por que esta noite é diferente de todas as outras?” E a resposta: “Porque esta noite fomos libertados!”

Mas é justamente na noite de Pessach – Chag Herut – que jamais devemos esquecer que nossa liberdade estará sempre condicionada a liberdade do outro. Se o Outro não for livre, jamais seremos realmente livres.

É POR ISSO QUE CABE A CADA UM DE NÓS, JUDEUS E NÃO JUDEUS,
LUTARMOS JUNTOS PELA LIBERDADE ALHEIA!

Chag Herut Sameach!
Feliz Festa da Liberdade!

Fontes de pesquisa:
Pessach com Leibowitz e Levinas por Paulo Blank
Pessach – Tempo de nossa Liberdade por Henrique Rattner da revista espaço Acadêmico.
Pessach – A Consciência da Liberdade por Yosef Y. Jacobson

revisão : Gabriel Guzovsky

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O Profeta Shmuel

O Profeta Shmuel

Fomos ao cemitério neste último domingo celebrar a inauguração do túmulo de Samuel Blay, nosso querido parente de minha mãe e amigo dos mais chegados de Itic Roizman, o Itcik , meu pai. Ambos pertenciam às reminiscências da shtetl em São Paulo e levaram consigo todo o peso da sua herança judaica em relação à nós , filhos já de uma modernidade cujo sentido judaico aberto vai se tornando cada vez mais subliminar de um sentimento profundo linguístico e cultural característico sempre de um  semi- estrangeiro em seu próprio país. 

Esse sentimento do Shtetl, que poderíamos colocar paralelo ao banto do negro africano, era uma tristeza que sempre se manifestou adormecida no próprio sentido comunitário judaico e que poderíamos colocar como existente para além do âmbito judaico. Isso por que conferia aos laços familiares uma impressão de solidez que permanecia adaptada ao além mar e era encontrada de forma comum nas ocasiões festivas, no nosso caso, casamentos, barmitzvas, sinagoga, clube, etc. Esses momentos, para nós, instauravam um sentido de participação coletiva e comunitária cuja infra-estrutura se mantinha de uma certa maneira protegida e alheia à superestrutura da metrópole, São Paulo, ainda mais que estudávamos também em colégio judaico. O que não poderíamos supor, na época, era uma certa coincidência temporal e factual entre o que estava prestes a surgir, uma nova era tecnológica, que iria fragmentar a cultura mil vezes mais do que a modernidade, e a morte dessa geração, de nossos parentes e amigos, Esther, Samuel, Itic, Julio, Paulina, Eni, Geni,  Saul, Malvina, Raquel, Edmundo, Dora, Saulzinho, Henrique, Ana, Paulo,  e muitos outros, enfermos Haidée,  e Paulina K, que significavam, na verdade, os pilares que sustentavam o espírito da coisa, da Shtetl, do Braz, coisa que só agora para nós é claro, essa gente miúda de ouro, esses Mench, enterraram com eles a vitalidade daquele estado de outrora.

Fui ao cemitério também para lembrar os cem anos que faria minha avó e segunda mãe Esther Blay falecida em 1994. Minha mãe ficou com Alzheimer em 1996, faleceu em junho de 2009 e meu pai em outubro do mesmo ano.

Bia Blay , filha de Samuel, leu neste domingo no túmulo um texto de um folder que tinha escrito anos antes, sobre seu pai, o Samuel. Era sobre as frases que nos deixavam perplexos que ele costumava dizer aos outros quando estávamos por perto, inesquecíveis para nós e para todos que lembram dele com amor.

A preferida era : “ Vamos conversar sobre a vida?”

Essa  frase, junto a outras, ouvíamos dele  desde a infância. 

Perguntava também: “ o que o meu amigo conta?, no caso o governador , ou , como vai o Bill Clinton?.

Se não víamos, na infância e na adolescência, sentido nessas frases, além da pura troça ou brincadeira com os pirralhos menores ou “aborrecentes”, penso hoje que o Samuel, o Shmuel, se antecipou poeticamente ou filosoficamente sobre o significado das coisas e sua essência. A perda de referenciais e a diluição de significado e sentido hoje, ele já entendia à sua maneira, como se pudesse colocar nessas frases simples, algo do significado para ele do que representavam as relações humanas simples...entre as pessoas...família, amigos, conhecidos... e isso talvez pudesse sugerir uma essência da vida colocada nessas frases simples.

Como minha irmã Maysa diz em nossa conversa via Facebook:

“ele era simples, gostava de sua rotina e das tradições, um amigo que não abandonava nem era abandonado.”

 Mas pensando mais profundamente nesta sua frase simples, que como se referiu no túmulo Bia Blay, poderiam ser uma essência dele, o “ Vamos conversar sobre a vida?”  hoje me incomoda. Pois era como se ele estivesse querendo dizer: E tudo o mais , o que importa? Vamos conversar sobre a vida?

Hoje, no estado em que nos encontramos, diluído o sentido humano, onde não nos falamos mais nem ao telefone, nem por mensagem, com essa geração e o que ela representou praticamente extinta, isso faz um profundo sentido muito mais que no passado. Conversar sobre a vida, conversar, na verdade, pensamos aqui conosco, o que importa na vida é o que travamos, sentimos pelos outros, aqueles que compartilham nossa vida durante alguns momentos, que depois irão embora. Como eles foram e todos nós iremos também.

E minha irmã diz no Facebook de sua sensação: 

“e como eles estão presentes, meu pai e ele, parece que nós vamos nos ver à noite para comer uma pizza...”

E eu digo: Era difícil entender ele: falar ao contrário as palavras, ou mande um abraço pro Bill, mas qual Bill? o Clinton... ou pro Garotinho (pois minha irmã mora no Rio).

Mas penso: o que sobra de tudo isso? O amor , o respeito pelo outro.

Esse Shmuel era na verdade um anarquista!!!

Maysa responde: À sua moda, bem particular, nada há de mais anárquico que isso! 

E eu digo: Completamente anárquico: Vamos conversar sobre a vida?

Ora, penso, todas as conversas são sobre a vida, perguntar isso para os outros é chegar num ponto de mutação. É o mesmo, que dizer, tudo, mas tudo mesmo o que importa é a gente estar aqui, agora, a conversar sobre a vida. Parece algo de uma simplicidade de reiteração que vem da forma portuguesa de pensar.

Maysa diz no Facebook: “Escreve um texto sobre isso...acho muito rico”

Tinha esquecido e perguntei... Como é mesmo que se diz gente em Iídiche?

Maysa: Mench

É isso. Mench

Maysa: Oi a Mench

Eu: Shmuel, o profeta poderia ser o título. O que fica no final das contas?

O que há de humano em cada um, é o que realmente importa, todos nós. Com suas fraquezas, seu brilho, o Shmuel, meu Pai, minha mãe, Esther.

Eu digo: bjo

Maysa: beijo ge.

Não é comum por aqui, sinto que forcei a barra como interlocutor,  mas consegui hoje conversar durante alguns instantes sobre a vida no Facebook...

Saiba mais…

Pessach com Leibowitz e Lévinas. Por Paulo Blank

Na mesma mesa, reunidos para a noite do Seder cercados pela curiosidade de sábios de todas as gerações, Yeshayau Leibowitz e Emanuel Lévinas conversavam animados estranhando nunca terem se encontrado antes. Nascidos na Lituânia no inicio do século e falecidos em meados da década de noventa, o primeiro em Jerusalém, o outro em Paris, o primeiro, um guerreiro disposto combater qualquer tentativa de sacralizar homens e terras argumentando que “só o que se encontra alem da realidade pode ser sagrado no judaísmo”, transformou-se numa figura exemplar no cenário religioso e político do estado de Israel. Lévinas com a paixão ética do seu pensamento foi reconhecido como um dos principais filósofos do século xx. Judeu praticante dirigiu uma escola judaica até o final da vida, deixou estudos do Talmud de enorme importância atual e uma obra filosófica cada vez mais estudada e difundida e um pensamento sem ilusões sobre a natureza da vida humana e a realidade das guerras. Dois guerreiros, cada um ao seu modo, ambos, na mesma mesa e eu olhando feliz por terem aceito o meu convite.
Começamos falando do Seder, ou da ágape, o banquete onde os gregos se reuniam para filosofar juntando o sabor ao saber. Foi esta a maneira que os talmudistas encolheram para formatar a noite em que cada um de Israel deveria entrar na pele de um escravo saindo do Egito. Livres, recostados em almofadas como faziam os gregos e depois os romanos, e não de pé como os nossos antepassados que, de ouvido atento, protegidos pela marca do sangue de um cordeiro sacrificado pintado no batente de suas portas, esperavam a passagem da morte. Audaciosos aqueles homens. Além de sacrificarem um animal que era sagrado no Egito, ainda usavam o seu sangue para marcar as casas assumindo de público que ali morava um membro de Israel.
Se há milênios atrás éramos escravos, hoje, sem pressa, participamos de uma conversa sobre a saída da escravidão. A Hagadá nos convida para encontrarmos no corpo a sensação de estarmos saindo do Egito, experimentando tanto a alegria quanto a angústia de um escravo em fuga, recomendando que quanto mais nos dedicarmos a falar do assunto, melhor será. Nesta proposta os sábios talmúdicos parecem obedecer ao mesmo princípio que usavam para a leitura da Torah. Quando decidiram que na escritura sagrada não haveria nem antes e nem depois, eles libertaram os pensamentos e as frases de suas molduras que assim puderam escapar da narrativa de um tempo ordenado, permitindo aos leitores “descobrirem” afinidades entre textos escritos a séculos de distância uns dos outros. Afinidades que abrem passagens entre épocas, inaugurando um agora anacrônico construído de pontes onde antes existiam tempos intransponíveis. Como se, ao lermos a Torah, sempre fosse possível reverter a narrativa a um tempo que diz respeito ao leitor em sua experiência atual, substituindo “o era uma vez” por um “aqui e agora”. Postura semelhante nos leva a conceber a noite do Seder, como uma vivência dedicada a sermos escravos em saída do Egito. Proposição extraordinária se considerarmos que foi sugerida a um Israel oprimido pelas nações em que habitavam. Uma verdadeira prescrição terapêutica. Para pessoas submetidas às nações onde habitavam nada melhor do que sentir-se saindo do Egito, escapando da vida vivida em corpos subjugados e experimentando naquela noite a mesma liberdade que um dia poderiam conhecer.
Na primeira noite do Pessach, terminada a narrativa da saída do Egito e após o conselho da Hagadá para não economizarmos em falar da libertação, ela nos leva ao encontro de Rav Eliezer. Este, com outros sábios do Talmud, se dedicavam a cumprir a orientação da fala infinita sobre a libertação, conversando e meditando durante toda a noite, sem repararem que já era hora da oração matinal. Um tanto decepcionado, Rabi Eliezer declara que, já tendo setenta anos de idade, nunca alcançou a graça de comentar (toda) a “saída do Egito nas noites” do Pessach. Ben Zoma lhe diz: “para que lembres a saída do Egito durante toda a tua vida, não só nas noites de Pessach, mas em todas as noites, e não só nelas, e sim durante todas as noites e dias da tua vida. Enquanto outros sábios ainda acrescentariam, todos os dias de tua vida até que seja trazido o Messias”
Toda a vida faz pensar na necessidade da atenção permanente com a frágil construção humana chamada por Lévinas de difícil liberdade. Aceitando a Torah, os hebreus estavam sendo convocados a olhar o mundo através de uma nova ótica. Tratava-se da invenção do outro e do primeiro esforço racional de pensar no envolvimento responsável por ele. Preocupação com o boi do outro, a casa do outro, a vida do outro, a viúva, o órfão, a terra que deve descansar ser cuidada e redividida para que ninguém fique sem o seu sustento, o cego que não deve ser enganado, o pássaro que tendo ovos em seu ninho não pode ser morto. Tratava-se da inauguração de um modo de pensar que tornaria a idéia do outro além de mim, o cerne de um modo diferente de perceber o mundo. Um mundo que não me pertence e no qual sou passageiro e sócio de todos os outros viajantes. Assunto inesgotável. Fala infinita que nos acompanhará enquanto o messias não chega para resolver as questões pendentes. Pensamento onde o filosofo Emanuel Lévinas percebeu a ética e os fundamentos da primeira filosofia. Diferente, no entanto, de outras filosofias que têm a ética como uma conseqüência possível, mas não inevitável.
Prática que transformou a espiritualidade de Israel, distanciando-a até hoje das espiritualidades que através do êxtase e da dissolução dionisíaca do eu buscam a ligação com o divino. Objetivo estranho a uma proposta que precisa da consciência para efetuar escolhas e compromissos. No êxtase há sempre uma submissão, na medida em que a consciência desaparece e a mente, dominada pelas emoções, vive a esplendorosa sensação de uma entrega imediata ao absoluto quando todas as aflições se dissolvem.
- Sheiavo, que virá! Exclamava exaltado Yeshaayau Leibowitz, toda vez que era perguntado sobre o profeta Elias, anunciador da chegada do Messias. Virá, virá, repetia o sábio incomodado com uma idéia que lhe cheirava a idolatria. Afinal, todo Messias que chega oferecendo salvação, se revela um falso Messias, prometendo um novo mundo e uma nova lei, tentando abolir as responsabilidades do pacto da Torah aprofundado pelos sábios do Talmud. Contra a Torah prometia-se a fácil liberdade da salvação individual, onde um ato de declaração de fé libera a alma de seus pecados, enquanto, para Israel, a espiritualidade se revela na responsabilidade com o outro.
Por ser esta espiritualidade um ato de escolha, nem vozes e raios sedutores e muito menos milagres e advertências puderam substituir a decisão do aderir consciente ao pacto com a Torah. Nunca alguém adotou uma forma de viver de acordo com a nova espiritualidade por causa de milagres, repetia Leibowitz um de seus muitos argumentos provocadores. Mesmo a geração que segundo a Torah teria presenciado fenômenos como o do mar se abrindo por intervenção divina, precisou de poucos dias para superar a tremenda impressão causada por um Deus revelado através de uma manifestação na história real das suas vidas. Dias depois de libertados, Israel buscou no bezerro feito de ouro, que eles mesmos coletaram entre si, a excitação produzida pelo rito pagão imediato e palpável. O conflito com o paganismo e a crença em espíritos persistiu para sempre como parte do embate interno do monoteísmo. É possível que a dificuldade de lidar com linguagens abstratas que não conheciam, fosse uma dificuldade que até hoje acompanha a mente humana.
Até aqui a nossa conversação ainda se encontra no campo do conhecido. No entanto, a releitura permanente transforma a Torah em uma revelação que se atualiza sempre. Foi assim que, com a ajuda dos talmudistas e de novos interpretes que se somaram à conversa infinita, aprendemos que a saída do Egito não transcorreu com homens ávidos de liberdade. Em seus comentários sobre a Torah, Leibowits nos coloca em contato com mestres que, lidando com as mesmas passagens que conhecemos, demonstram a possibilidade de compreênde-los de uma maneira adulta e de viver a religião e seus ensinamentos sem os chauvinismos e a exaltação dos comentadores que circulam pelo judaísmo virtual da internet.
Quando os talmudistas leram na Torah que Israel não deu ouvidos a Moisés “por causa da angústia do espírito e pela dura servidão” (me kotzer ruach vê avoda kashá), eles se espantaram perguntando se, por acaso, “existe alguém que recebendo uma boa nova não se alegre?”. Ao invés de seguirem intérpretes que viam naquela atitude o resultado de uma vida sofrida capaz de transtornar a razão, eles preferiram enfrentar o texto de modo afirmativo. Por acaso não conheciam a antiga tradição prevendo que Israel seria escravizado no Egito e mais tarde libertado? Por isto está escrito: não ouviram a Moises. Não ouviram, nem deram atenção porque ele falava algo que já sabiam. Por que? Por causa da Avoda Kasha, interpretada no texto talmúdico como Avoda Zará! É preciso retornar ao texto hebreu para apreciar a interpretação. Avoda Kasha, o trabalho pesado é assim entendido por ser Avoda Zará, trabalho estranho ou idolatria, eis aí o verdadeiro significado do trabalho pesado.
Aculturados no Egito, eles não deram ouvidos a Moises por que estavam imersos na pratica da idolatria e não por que sofriam! Continuando na leitura do texto o Talmud se apega ao uso da palavra “ordenarás” Vaietzavem, estranhando que fosse necessário dar ordens a quem recebe boas novas. E qual a ordem? A resposta se encontra no Talmud de Jerusalém no tratado de Rosh Hashaná no comentário sobre o toque do Chofar no ano da abolição das dívidas e dos escravos. Aqui, novamente encontramos a expressão Vaietzavem, referindo-se mais uma vez a ordenarás a Israel. Este trecho que trata da libertação do escravo hebreu, nos levará ao profeta Jeremias que viveu oitocentos anos após a saída do Egito. Em suas advertências ele relembra ao povo que no dia da sua redenção Deus pactuou com Israel um acordo através do qual libertariam o escravo hebreu no sétimo ano de sua escravidão, mas os hebreus romperam com o pacto que, no entanto, era condicional. Ainda, enquanto escravos, Israel recebeu a primeira mitzvá que comprometia o seu futuro de homens livres em sua terra caso não guardassem a condição imposta. Esta mitzvá indicava que a libertação foi AL Tnai, em condição e não um presente caído dos céus no colo de pessoas que precisaram receber uma ordem para saírem da escravidão em que viviam. Responsabilizar-se pela liberdade do outro, eis a condição para que o escravo possa garantir a própria liberdade e a posse da sua terra.
Ideais éticos criados por pessoas dominadas podem sofrer transformações quando elas se encontram no poder. Só nesta condição é possível saber a verdadeira afinidade entre o ideal e os seus criadores. Foi Rav Iehuda Halevi, o grande poeta medieval, quem, no século 12, recolocou esta questão em evidência na sua obra “O Kuzari”. Nela o rei Kazar ouve sábios de diferentes tradições para decidir por qual religião monoteísta deveria optar. Em determinado momento o sábio hebreu fala ao rei Kazar sobre a vida no exílio e a humildade de Israel que não mata e nem se ocupa de guerras. De maneira surpreendente, Halevi dá ao rei Kazar a seguinte fala “Esta afirmação estaria correta se vocês aceitassem o estado de miséria em que vivem de livre vontade. No entanto, se pudessem destruir os seus inimigos seguramente o fariam”. Ou seja, se estivessem livres e vivendo na própria terra, aí sim, poderiam comprovar se era autêntico o seu espírito “humilde e sofredor”.
Em outubro de 1953 Yeshaaiu Leibowits entra nesta longa conversação, através do seu mais importante posicionamento acerca da afinidade entre política e preceitos religiosos. Dias antes, em resposta a inúmeros atos terroristas realizados por fedaim vindos de um vilarejo jordaniano chamado Kivia, um destacamento do exército de Israel liderado pelo então oficial Ariel Sharon, chegou à aldeia aparentemente deserta e implodiu mais de quarenta casas como ato de retaliação e advertência. No dia seguinte, descobriram sessenta e nove corpos de crianças e velhos que não conseguiram fugir e se escondiam nas casas. Leibowitz, homem religioso e reconhecido por sua militância a favor da Torah, tendo perdido um filho na guerra de independência, não hesita em entrar no debate milenar sempre repetindo que a sua preocupação não com a ética, um conceito ateu, e sim com os preceitos da religião.
O seu célebre artigo “Leahar Kivia” (Depois de Kivia), tem inicio com uma afirmação que nos soa familiar: “Kivia e tudo que está envolvido neste fato fazem parte da enorme experiência a que estamos sendo submetidos após a independência nacional, a criação de um estado, de uma força instituída, enquanto nação, sociedade e cultura que, durante gerações, pode usufruir de uma vida espiritual e cultural no exílio, sendo governado por outros povos e sem alternativa pessoal, vivendo por gerações, do ponto de vista da moral e da consciência, em uma encubadeira artificial onde pudemos desenvolver valores e conteúdos de sabedoria que não foram expostos à prova da realidade” A condição da prova de realidade atravessa um tempo onde não existe nem antes e nem depois. O mesmo argumento do Kuzari/Halevi, a mesma preocupação dos talmudistas diante dos primeiros libertos do Egito, a mesma advertência do profeta Jeremias alcança nos dias atuais o nosso pensamento nos levando a tomar parte da conversação acerca da exigente liberdade proposta e aceita por Israel.
Durante o Shabat do Pessach nas sinagogas costuma-se ler o Cântico dos Cânticos. Nele existe uma passagem que descreve o ventre da amada e seu umbigo. “Teu umbigo é uma taça redonda, onde nunca falta o vinho misturado. Teu ventre é um monte de trigo cercado por uma sebe de rosas.” Este versículo é retomado no Talmud como sendo uma metáfora do tribunal do Sinédrio. No corpo da amada viam Israel e no seu umbigo a Jerusalém terrestre, centro do universo, de onde os sábios legislavam para o mundo, distribuindo a sua sabedoria, como o vinho que não falta jamais. Sentados em semi-circulo, eles se viam todo o tempo. Num lugar assim, ninguém consegue esconder-se, nem vender o seu voto sem ser percebido ou desligar-se de sua responsabilidade com a viúva, o órfão, os desprotegidos. No Talmud os ensinamentos do Sinédrio foram comparados ao monte de feno protegido pela cerca de rosas que aparece no cântico. Já imaginaram proteger algo com uma cerca de rosas? Estranha maneira de dizer que as leis da Torah não podem impor-se por si mesmas. Nem raios e nem trovões podem impor o que não se quer. O cercado-tentação que as protege é frágil e mesmo que tenha espinhos, é só pular a cerca e saltar por cima dos ensinamentos que protegem a convivência social. Além disso, as próprias rosas são tão sedutoras que dá vontade de arrancá-las.
Através dessa metáfora, a lei e o pacto se revelam frágeis e só a decisão e o comprometimento com os princípios da Torah podem garanti-lo. Mesmo não sendo o meu próximo o meu semelhante, pois ninguém neste mundo pode ser o meu semelhante, ele é meu vizinho com quem devo conviver e por quem sou responsável. Para praticar esta exigente mudança de posição fui eleito entre as nações. Não há milagres, somente a difícil liberdade de uma religião feita para adultos com vontade de praticá-la sem esperar recompensas alem de uma vida protegida por um cercado de rosas. Mas, nem todos querem participar da conversação celebrada na noite do Pessach quando festejamos a exigente liberdade de pertencer a um Israel aberto a todo aquele que se disponha a ultrapassar a simplicidade espiritual de uma esperança infantil.

Deferências bibliográficas.
Emanuel Lévinas
Mas Allá Del Versículo
Difficult Freedom
Quatro Leituras Talmudicas
Algunas reflexiones sobre la filosofia del hitlerismo.

Yeshaayau Leibowits
Sichot Al haguei Israel Umoadaiv
Sheva Shanim shel Sichot Al Parachat Hashavua

Paulo Blank é psicanalista e escritor, Dr. em Comunicação e Cultura, dedica-se ao estudo do pensamento judaico.

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