Anne Frank, testemunho e símbolo
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A singularidade do testemunho, a marca indelével: 70 anos depois de sua morte (em fevereiro de 1945, de tifo, no campo de Bergen-Belsen), Anne Frank parece uma figura “real”, a mocinha sorridente que todos nós um dia conhecemos. Vizinha, filha adolescente, amiga. Também celebridade: seu Diário tornou-se best seller internacional, exposições itinerantes e filmes sobre sua história dão volta ao mundo, uma clicada no Google aponta 157 milhões de resultados com seu nome.
E, ainda assim, um livro como O Mundo de Anne Frank, de Janny van der Molen, originalmente escrito para o público juvenil, nos deixa com lágrimas nos olhos. Não por ser piegas, o que ele não é. Tampouco por ser didático, o que ele é na medida certa, introduzindo aos poucos o leitor ao universo do Holocausto, definido por François Lyotard como “o terremoto que destruiu os instrumentos de mensuração de terremotos”. No momento em que uma avalanche de refugiados implora abrigo à Europa, retorna outro grito de socorro: “O pai de Anne escreveu carta após carta para tentar levar a família pra os Estados Unidos. Ou então Cuba. Apesar de não demonstrar, ele estava desesperado. Mas todas as suas tentativas fracassaram. Não conseguiram sair da Holanda”, informa a autora ao falar das normas que impuseram aos judeus o uso da estrela de Davi e o isolamento social antes de despachá-los para a morte.
Só o pai, Otto, sobreviveu – o que evoca, para uma leitora como eu, as figuras que chegavam ao Rio, nos anos 50, náufragos de fatos que crianças não deviam conhecer. Roupas pesadas, olhar fugidio, eram imigrantes acolhidos pela comunidade judaica com simpatia, ajuda material e…incômodo – eram o testemunho vivo da normalidade abalada para sempre, feriam com sua miséria a rotina pacata que acreditávamos inabalável.
A infância burguesa europeia, relatada com minúcias por van der Molen, também parecia inabalável. Aqui, o destino individual dá rosto aos números tétricos e os dados precisos, resultantes de pesquisa extensa, fortalecem a relevância do símbolo. O mundo de Anne Frank foi escrito com apoio da Casa de Anne Frank, um dos museus mais populares de Amsterdã (em 2014 teve o recorde de 1.230.000 visitantes). Museu que também pode ser visitado via computador, em 3D, emocionante e contraditório em alguns aspectos – deveria a vida interrompida aos 15 anos desembocar em lojinha de lembranças? Anne Frank também pode ser baixada em aplicativos para celular e tablet, e a gente pode percorrer com ela as ruas calmas da cidade.
Graças ao Diário e às numerosas fotos familiares (Otto gostava de fotografar), foi possível recriar a vida que representa outras vidas – do nascimento de Anne em 1929, em Frankfurt, ao exílio na Holanda em 1933, à ida para o esconderijo em 1942 e à prisão em 1944. A partir daí, até a morte, imagens macabras não são mostradas. De alguma forma, contudo, somos convidados a pensar nas condições que levaram um regime político totalitário ao poder – na esteira de uma crise econômica – e na eficácia da destruição metódica e planificada que jamais poupou as crianças (um milhão e meio delas foram mortas no Holocausto).
Anne Frank não precisa ser lida como uma representação de “idealismo juvenil” em tempos belicosos. Sua tragédia foi especificamente judaica. Ela não foi morta porque os maus (alemães) invadiram um país vizinho (Holanda), e sim no contexto da política de extermínio que não distinguiu classe social, gênero ou ideologia. O livro se abre para reflexões que vão além das que ressaltam a suposta “força” de um pequeno núcleo familiar. Qual foi o papel dos holandeses naquilo tudo? – ao longo dos canais pontilhados de barcos, caminham hoje as pessoas cujos pais, ou tios, ou vizinhos, colaboraram com os nazistas, e também aquelas que só desviaram o olhar – dos 70 mil judeus que viviam em Amsterdã em 1940, apenas 10 mil sobreviveram.
Mas não sou pessimista. Também caminham ali, em contraponto, os fantasmas solidários e os exemplos da compaixão humana – como os daqueles que esconderam os perseguidos, e os da dona de casa holandesa que acolheu um bebê de três meses, entregue dentro de uma mala, que cresceu para se tornar o rabino liberal Avrahan Soetendorp.
Afirma-se que é preciso lembrar para impedir que situações assim aconteçam novamente. Mas o que é eficaz, o que é mera catarse, o que é lugar-comum? Não esqueçamos que o papel dos monumentos ao Holocausto é uma discussão em pleno curso. Uma das frases mais citadas de Anne é “apesar de tudo ainda acredito que as pessoas têm mesmo bom coração”. Ela tinha 15 anos e imaginação suficiente para abrigar todos os desejos do mundo. Aos adultos, reféns da geopolítica, só nos resta desejar (suspendendo a descrença) que os mortos sem sepultura, como ela, não voltem a assombrar a humanidade.
Heliete Vaitsman, jornalista e escritora, autora de O cisne e o aviado
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